Decisão do Supremo sobre vale-pedágio cria enxurrada de ações milionárias – Consultor Jurídico
Por Eduardo Reina
Uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 2020 obrigando empresas contratantes de serviço de transporte a pagar duas vezes o valor do frete em caso de não recolhimento antecipado do vale-pedágio está provocando uma enxurrada de processos na Justiça. As transportadoras de carga movem ações milionárias contra o varejo e a indústria pedindo indenizações.
A interpretação jurídica, após a decisão do STF, é de que o valor da multa pelo não adiantamento do vale-pedágio pode ser até duas vezes o valor do frete. Isso provocou a abertura de milhares de ações de transportadoras contra ex-clientes, empresas do comércio e da indústria.
No Rio Grande do Sul, ações indenizatórias envolvem milhões de reais contra empresas que contrataram fretes. A Transportes Cisne Ltda., falida, venceu processos no Foro de Itaqui com valores de R$ 8.962.959,16 e R$ 16.596.023,05. Já a Fardier Logística Especializada em Cargas Especiais Ltda. obteve vitória no Foro de Canoas no valor de R$ 22.197.338,00. Essa mesma tendência começa a se repetir no restante do país.
Histórico do imbróglio
O vale-pedágio foi criado há mais de 20 anos pela Lei nº 10.209/2001, com o objetivo de garantir o pagamento pelo embarcador ao transportador de forma antecipada e apartada do frete. A medida beneficiou principalmente os caminhoneiros autônomos e as pequenas empresas.
Desde a promulgação da lei, os tribunais foram acionados para esclarecer diversas controvérsias, sobretudo uma relativa ao artigo 8º da norma. Esse dispositivo determina que o embarcador será obrigado a indenizar o transportador, em quantia equivalente ao dobro do frete, caso o vale-pedágio não seja pago ao tempo e ao modo previsto na lei.
O STF julgou constitucional o recebimento do frete em dobro ao motorista que não recebeu o vale-pedágio antes do início da viagem. Assim, desde 25 de outubro de 2002, a responsabilidade e a obrigatoriedade pelo pagamento dos valores devidos a título de pedágio passaram a ser do embarcador.
Quem não viu cumprida essa determinação pôde ingressar com ação judicial para buscar os valores devidos e corrigidos no período de dez anos, até 24 de abril de 2022. Após essa data, o prazo foi reduzido. Somente é possível buscar valores de um ano, de acordo com a Lei nº 14.229/2021, a Lei do Frete.
A situação se aplica sobre a empresa que não antecipou o pagamento do vale-pedágio obrigatório, nem saldou o valor do pedágio, o que demonstra flagrante violação ao artigo 1º, parágrafo 1º, e ao artigo 3º da Lei nº 10.209/2001.
Longos debates
Os debates sobre a validade da indenização pelo dobro do valor do frete por não fornecimento antecipado do vale-pedágio duraram muitos anos. Até o STF concluir pela constitucionalidade do artigo 8º da Lei nº 10.209/2001, no julgamento da ADI 6.031, proposta pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), fixando precedente vinculante e obrigatório sobre o tema.
"As empresas têm de se adequar à lei. Mas o entendimento estabelece uma burocracia que torna mais caro o serviço prestado, pois a responsabilidade de determinar o valor do vale-pedágio a ser pago antecipadamente é do embarcador, que tem de estruturar uma área dentro da empresa para fazer isso, quando na verdade a responsabilidade deve ser da empresa de transporte contratada. Isso provoca uma perda de eficiência. Aumenta o custo dentro da cadeia de transporte", explica Igor Bimkowski Rossoni, especialista em Direito Empresarial, Contratos e Contencioso do escritório Silveiro Advogados, de Porto Alegre.
Os valores das indenizações pelo descumprimento da lei, explica o advogado, transformaram-se numa verdadeira mina de ouro para caminhoneiros autônomos e pequenas transportadoras, que podem duplicar seu faturamento. Empresas que estão falidas ou em extremas dificuldades financeiras também vêem uma oportunidade de reequilibrar as finanças.
Rossoni dá um exemplo prático. Segundo o advogado, um frete entre Porto Alegre e São Paulo no valor de R$ 10 mil, com custo de pedágio estimado entre R$ 500 e R$ 1 mil, se não tiver o pagamento do vale-pedágio antecipado, resultará em multa de R$ 20 mil. "Assim, são R$ 20 mil de multa por não antecipar R$ 500 de pedágio. Aí você joga isso para dez anos, que é o prazo para prescrição, e veja quanto vai custar tudo", alerta o advogado gaúcho. "Nos preocupa que no meio de ações deste tipo estão verdadeiros aventureiros, sem responsabilidade com essas ações. Eles utilizam a Justiça gratuita em ações para empresas falidas ou em muita dificuldade."
Proporcionalidade
Outro advogado procurado pela revista eletrônica Consultor Jurídico chama atenção para o princípio da proporcionalidade, que estaria ausente na interpretação desses casos. "O STF decidiu pela constitucionalidade do artigo 8º da Lei nº 10.209/2001 no âmbito da ADI 6.031. Ao prever que a penalidade seja calculada sobre o valor do frete, tal decisão, na prática, pode resultar em indenização em patamares muito superiores ao valor do vale-pedágio, em desacordo com o princípio da proporcionalidade, que usualmente é resguardado pela jurisprudência da Suprema Corte", avalia Gregory de Lima Barbosa, especialista em Direito Regulatório do Stocche Forbes Advogados.
"Argumenta-se que essa indenização é desproporcional porque utiliza como base de cálculo o valor do frete, e não o valor do pedágio cobrado no trecho percorrido", resume Bonifácio Suppes de Andrada, especialista em Direito Regulatório do Mello Torres Advogados.
Tal argumento, de fato, levou o Tribunal de Justiça de São Paulo a declarar a inconstitucionalidade do artigo 8º da Lei 10.209/2001. E o Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, também se manifestou, em 2016, a favor da redução equitativa sempre que a indenização se mostrasse excessiva.
Esses posicionamentos, no entanto, foram superados em 2020, quando o STF declarou a constitucionalidade do artigo 8º da Lei 10.209/2001.
O voto da relatora, ministra Carmen Lúcia, entendeu não haver arbitrariedade, tampouco desproporcionalidade, na base de cálculo da indenização. O ministro Gilmar Mendes foi voto vencido, declarando a desproporcionalidade da multa.
Com base nessa decisão do STF, os transportadores puderam ajuizar livremente ações judiciais requisitando o pagamento de indenização, muitas vezes milionárias.
Controvérsias não faltam
Algumas questões ainda permanecem longe de um entendimento claro, de acordo com especialistas no assunto. A primeira delas diz respeito ao prazo prescricional para o pedido de indenização. Em 2016, o STJ fixou-o em dez anos porque se tratava de ação que visa à reparação civil por danos decorrentes de descumprimento de obrigação contratual. Essa posição jurisprudencial, contudo, pode ser revista em razão de uma alteração legal de 2021. O artigo 8º passou a contar com parágrafo que estipula um prazo prescricional de 12 meses, contado da data de realização do transporte.
Esse dispositivo também teve sua constitucionalidade questionada e foi objeto da ADI 7.136. Porém, o ministro relator a indeferiu monocraticamente, sem analisar o mérito da questão.
"Desde a decisão do STF, nota-se uma tentativa de dar maior racionalidade à aplicação da Lei 10.209/2001, de modo a conter uma avalanche de ações judiciais e de condenações excessivas. Além da referida mudança legal, o STJ, em decisão de 2020, por exemplo, impôs às transportadoras o ônus da prova sobre o valor devido em todas as praças de pedágio existentes ao longo da rota contratada. Uma vez indicado o valor devido, caberá ao embarcador demonstrar ter executado o seu pagamento antecipado", afirma Bonifácio Suppes de Andrada.
"Cerca de 70% das empresas multinacionais e transportadoras não obedecem a lei. Quem não antecipa valores está cometendo uma infração", explica o advogado Rafael Caselli Pereira, doutor e mestre em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBPD) e do Centro de Estudos Avançados de Processo (Ceapro).
Pereira alerta que cabe ao autor, contratado/subcontratado — de acordo com o artigo 373, I, do CPC/2015 —, comprovar ter efetuado o frete, bem como comprovar a existência das praças de pedágios, especificando sua localização e valor dos pedágios à época do frete, considerando as concessionárias e praças existentes entre a origem e destino dos fretes.
"Feito isso, inverte-se o ônus probatório (artigo 373, II, do CPC/2015), cabendo ao demandado — embarcador/tomador/subcontratante — a demonstração de que o vale-pedágio obrigatório foi entregue antecipadamente ao transportador, no ato de cada embarque que lhe era exigível tal obrigação, contemplando todas as praças de pedágios transitadas pelo contratado", explica o advogado, cujo escritório no Rio Grande do Sul é responsável por aproximadamente 1,5 mil ações desse tipo em todo o país.
No sentido de evitar uma prática muitas vezes abusiva adotada pelas empresas tomadoras e/ou embarcadoras das cargas, a lei estabeleceu que o valor do vale-pedágio não integra o valor do frete, não sendo considerado receita operacional ou rendimento tributável, nem constitui a base de incidência de contribuições sociais ou previdenciárias (artigo 2º).
"Esse entendimento vai de encontro ao apelo social dos caminhoneiros autônomos e transportadoras, pois as empresas multinacionais que dominam o mercado impõem o valor do frete que queriam. Acaba prevalecendo o poder econômico e quebra o caminhoneiro autônomo. Esse ajuste na legislação é uma conquista para a categoria", avalia Pereira.
Clique aqui para ler o acórdão da ADI 6.031
ADI 7.136
Eduardo Reina é repórter especial da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 15 de novembro de 2022, 9h52
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