Ex-cotistas, advogados negros driblam exclusão e ocupam do STF ao CNJ – UOL Educação
Jean Albuquerque
Colaboração para o UOL, de Maceió (AL)
06/10/2022 04h00
A advogada Allyne Andrade, 36, atuou na inclusão de ações afirmativas no CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Irapuã Santana, 35, foi assessor no STF (Supremo Tribunal Federal) e hoje preside a Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP. Já a advogada Karla Meura, 40, foi a primeira mulher negra eleita conselheira seccional da OAB no Rio Grande do Sul. Além da profissão, todos eles têm em comum a forma como chegaram à universidade: as cotas raciais.
Integrantes de um segmento excludente, já que só 1% dos advogados de grandes escritórios é negro, todos esses profissionais resolveram ainda trilhar um caminho bem específico na profissão: ampliar os direitos da população negra.
Nascida e criada em Realengo, na Zona Oeste carioca, Allyne Andrade é doutora em direito pela USP (Universidade de São Paulo) e, desde 2020, é superintendente adjunta do Fundo Brasil de Direitos Humanos, onde atua apoiando organizações da sociedade civil que enfrentam o racismo e defendem comunidades indígenas. Além disso, é docente do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa), onde também lidera o Comitê de Diversidade, que atrai à instituição mais professores, alunos e colaboradores de diferentes raças e vivências sociais.
A trajetória acadêmica da advogada começou quando ela ingressou no curso direito na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) em 2004, época em que a instituição dava seus primeiros passos para a implementação da ação afirmativa que instituiu as cotas raciais no ensino superior, algo até então inédito no país.
As ações afirmativas mudaram minha vida, mudaram minha família. Virei ativista pela inclusão racial por conta das cotas”
Allyne Andrade, advogada
De lá para cá, ela tenta transformar a estrutura do direito público. Ao atuar no CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em 2014, fez parte da JusDh (Articulação Justiça e Direitos Humanos), com a qual escreveu o manual de ações afirmativas do CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) e atuou em ações coletivas de advocacy, como a que resultou na aprovação, em 2017, na reserva de 20% das vagas nos concursos públicos do CNMP para negros.
Em 2019, a advogada também foi coordenadora jurídica da Mandata Quilombo da deputada estadual de São Paulo Erica Malunguinho. Em paralelo ao trabalho legislativo, atuou em casos como o da dançarina Barbara Quirino, que ficou um ano e oito meses presa por uma acusação frágil de roubo. A única prova contra ela foi o relato de uma testemunha que, após ver uma foto de Quirino, achou o cabelo dela parecido com o da autora do crime. Em maio de 2020, a jovem foi absolvida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo.
Allyne diz que as referências vieram de casa. O pai, Jorge Andrade, 65, recebeu uma bolsa de estudos e concluiu o curso de contabilidade em uma faculdade privada na década de 1970. Ele foi jogador de futebol do time da faculdade e porteiro até conseguir o primeiro emprego na área. Já a tia, Maria José Gonçalves, 70, deu a Allyne um jornal local que aguçou na sobrinha a curiosidade para saber mais sobre as cotas na universidade.
Nesta época, Allyne também conheceu e se aproximou da ONG Educafro, entidade que oferece cursos pré-vestibulares para estudantes negros e de baixa renda. Com a conquista da vaga na Uerj, voltou à entidade, tornou-se professora e, depois, coordenadora. Entre os alunos que passaram por sua sala de aula estão o irmão mais novo e a cunhada. Ambos conquistaram suas vagas na Uerj em 2005, também via cotas, para cursar engenharia e história, respectivamente.
Irapuã Santana alcançou o topo da carreira jurídica. É assim que o advogado e presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo) caracteriza a experiência de dois anos como assessor do ministro Luiz Fux no STF (Supremo Tribunal Federal) — uma posição rara para um advogado negro, já que desde a sua fundação em 1829, o Supremo teve apenas três ministros negros.
Assim como Allyne, Irapuã é da primeira turma de cotistas da Uerj e enfrentou desafios no processo acadêmico. “De tanto ouvir que as ‘cotas não mediam capacidade’, questionei minha capacidade intelectual. Aquilo não fazia sentido. Na época em que estudava para o vestibular, sempre fui o ‘top das galáxias’ pelas minhas notas e meu conhecimento”, lembra.
Atualmente, Irapuã lidera um projeto de cotas dentro da OAB-SP que tem o objetivo de garantir que pelo menos 30% de advogados negros participem de todos os eventos das comissões da Ordem. Em implementação, o texto do projeto foi publicado em forma de edital e já deve influenciar na formação da lista de nomes de candidatos a desembargador para o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
“Estamos entrando num lugar que é nosso. A instituição, por meio da sua diretoria, demonstra que se conscientizou do seu dever. Pagamos a mesma anuidade, mas não tínhamos lugar. Hoje isso começou a mudar”, defende Irapuã. “A mudança na regra, por si só, já é uma quebra de paradigma importante e manda uma mensagem poderosa. A OAB precisa se comprometer com a diversidade e a inclusão e tem agido coletivamente para que isso se transforme”, complementa.
A advogada gaúcha Karla Meura, 40, entrou na universidade em 2005, por meio de um projeto de ações afirmativas do Cecune (Centro Ecumênico de Cultura Negra), que oferecia bolsas de estudos de 100% para alunos negros no Centro Universitário Metodista.
Dez anos depois ela se tornou a primeira mulher negra eleita conselheira seccional da OAB-RS e participou da Comissão da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, colaborando com a produção do levantamento sobre o racismo institucional no Brasil e a participação de negros nas instituições do sistema de Justiça.
Em 2016, Meura foi convidada para compor a Comissão da Mulher Advogada, na qual coordenou o Grupo de Trabalho ‘Gênero e Raça’. Por meio dele, realizou encontros e rodas de conversas sobre voto consciente, gênero e raça com lideranças femininas. Dois anos depois, a advogada organizou o grupo que implementou a Comissão da Igualdade Racial no Rio Grande do Sul.
Além disso, presidiu um coletivo com mais de 120 juristas antirracistas que promoveu cursos sobre direito e relações raciais em parceria com a ESA-RS (Escola Superior da Advocacia), bem como encontros mensais sobre questões raciais no direito. A gaúcha também foi representante titular da OAB-RS para integrar a Comissão Intersetorial Destinada à Elaboração do Plano Estadual de Promoção da Igualdade Racial e do Combate ao Racismo no Estado do Rio Grande do Sul.
Meu desafio constante é provocar o sistema de Justiça do Brasil para debater com profundidade os temas concernentes às questões étnico- raciais”
Karla Meura, advogada
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