Famoso por goleadas, Carioca feminino tem times amadores formados por convocação em redes sociais – Extra

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Já eram quase 20h da última sexta-feira quando as jogadoras do Esporte Clube Rio São Paulo iniciaram o treino no campo de terra batida da praça de Campo Belo, sub-bairro de Campo Grande, Zona Oeste do Rio. A temperatura estava abaixo dos 20º, mas este era o menor dos desafios. Embora a chuva tivesse cessado, os poções d’água e a lama estavam por todos os cantos, onde grama era rara. A atividade era a última antes do jogo contra o Rio de Janeiro — derrota por 3 a 0 —, pela rodada final da fase de classificação do Carioca feminino adulto, que agora vai para o mata-mata. Penúltimo colocado da competição, atrás apenas do Brasileirinho pelo saldo de gols (-85 a -105, sem fazer um gol sequer), o time levou muitas goleadas, mas também orgulho e motivação.
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Juntar equipes amadoras com as de clubes maiores é uma característica do Estadual do Rio. Resulta num desequilíbrio gritante de forças e pouco acrescenta tecnicamente às jogadoras dos times mais estruturados. Mas, ao mesmo tempo, oferece oportunidade para que mulheres e garotas de comunidades, com pouca ou nenhuma experiência no futebol, possam ter visibilidade.
— Jogar com elas foi uma oportunidade incrível, que vou levar para a vida toda. Durante a partida, elas nos motivaram, falavam o tempo todo para a gente não desistir. Em várias vezes que tomei gol, elas iam até mim e diziam “Vamos, goleira, você consegue”. Isso me motivou a continuar — contou Rayssy Rodrigues, de 18 anos, referindo-se ao jogo em que o Rio São Paulo perdeu de 34 a 0 para o Flamengo, no dia 17 de setembro.
Coordenadora do Comitê de Fomento ao Futebol Feminino, a ex-jogadora Márcia Bezerra explica que as goleadas que costumam chamar a atenção do público não especializado já eram esperadas. O órgão nasceu em 2017, através da lei estadual 7576, com objetivo de acompanhar, discutir soluções e ajudar no desenvolvimento da prática. Organiza uma série de torneios locais, de base e, desde 2019, é parceiro da Ferj no Carioca.
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Naquele ano, o campeonato adulto contou com 29 equipes. Mas ficou marcado pelos 56 a 0 do Flamengo no Greminho, do bairro de Cosmos, também da Zona Oeste:
— A ideia de levar estes times pequenos é para que o campeonato fosse um marco. Dizer: “A gente existe. O futebol feminino das comunidades existe”. Mas precisa que a federação dê suporte, nos ajude a buscar patrocínios para mostrar o potencial dessas meninas, que já entram em campo com um delay físico.
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Veio a pandemia, a crise econômica se agravou e o projeto não conseguiu sair do ponto de partida. Conversas com possíveis patrocinadores retrocederam. E, segundo Bezerra, a própria federação, que chancela o torneio e abateu algumas taxas para reduzir os custos destes clubes, não se envolveu mais do que isso.
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Famoso em 2019, o Greminho deixou de ter time feminino. Segundo o presidente e técnico Hamilton Silva, mesmo sem alguns custos a participação no campeonato foi sinônimo de prejuízo devido a gastos com transporte, aluguel de campo, ambulância e médico. A exposição com a goleada de 56 a 0 até fez surgirem ofertas de ajuda no calor do momento. Mas nenhuma se concretizou.
— Treinávamos numa praça pública. Aí fomos ficando desanimados e, infelizmente, não temos mais a equipe. Perdemos a motivação por não ter apoio. As meninas foram seguindo seu rumo, e a idade foi batendo — disse.
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O Greminho só tinha equipes masculinas, que existem até hoje. Quando surgiu a chance de disputar o Carioca feminino de 2019, as jogadoras foram sendo recrutadas por redes sociais e aplicativo de mensagens.
— A visibilidade com certeza colocou o nome Greminho como pauta na federação. A derrota foi vista como vergonha por alguns e como alerta para muitos outros. Toda experiência é válida — afirma Irlana Souza, ex-atacante do time, que passou pela base do Vasco e jogou por Botafogo e Bangu.
Hoje com 39 anos, Irlana é motorista de aplicativo. Depois do Greminho, ela teve seu terceiro filho e largou o futebol. Trajetória semelhante a de sua filha, Muriel, que disputou o Carioca de 2019 como zagueira da equipe, mas, nos 56 a 0 para o Flamengo, precisou ir para o gol depois que a goleira se lesionou. Ela também já teve filho e deixou os campos.
— Hoje a gama de equipes é enorme muitas meninas podem andar de cabeça erguida sem sofrer com a discriminação do passado — opina Irlana.— Se na minha adolescência o futebol feminino tivesse a visibilidade de hoje, com certeza eu teria tido oportunidades melhores.

O treino do Rio São Paulo na praça de Campo Belo, sub-bairro de Campo Grande
O treino do Rio São Paulo na praça de Campo Belo, sub-bairro de Campo Grande Foto: Brenno Carvalho

No Carioca deste ano, três equipes sequer pontuaram. O Rio São Paulo e o Brasileirinho, de Anchieta, por terem perdido todos os jogos; e o Barcelona, de Curicica, que desistiu de participar por não ter elenco para disputar todas as categorias (o sub-17 e o sub-20 ocorrem quase que simultaneamente ao adulto). Apesar de todas as dificuldades, engana-se quem pensa que a rotina destas atletas é de tristeza e desânimo.
— Posso levar a quantidade de gols que for, mas isso só me motiva a continuar. As meninas são minha segunda família — afirmou a goleira Rayssy.
O Rio São Paulo resume bem a realidade das equipes amadoras que participam do Campeonato Carioca. O time foi formado pouco mais de um mês antes do início do torneio. Contava inicialmente com três atletas. Conseguiu inscrever 30 depois de fazer convocações nas redes sociais.
Os treinos são realizados à noite, para que as atletas consigam conciliar suas rotinas de trabalho e estudo com os treinamentos. O campo na praça de Campo Belo foi obtido com ajuda da associação de moradores.
A parte física é trabalhada numa academia local, também viabilizada através de parceria. Muitas jogadoras ficam no alojamento do clube durante a semana para conseguirem ir aos treinos, já que moram em lugares distantes do Rio — além de uma que veio de Santarém, no Pará, em busca do sonho de se profissionalizar.
— Se não há investimento, só com muita sorte você vai chegar num time pequeno e achar uma Marta. Então, é óbvio que não vai ter time de comunidade que vença ou empate com um Flamengo. Mas o Campeonato Carioca é uma tremenda janela para misturar o profissional com o social — opinou Márcia Bezerra. — Já tivemos meninas convocadas para fazer testes. A gente entendeu que existe um caminho.

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