Garimpo, violência e morte: relatório mostra política de destruição do povo Yanomami – Congresso em Foco

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Garimpo e omissão do governo: presente e futuro sombrios para crianças Yanomami. Foto: Condisi-YY/Divulgação
Povos Indígenas

24.01.2023 07:29 0

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Principal motivo da crise humanitária vivida pelos yanomami, segundo especialistas, o garimpo ilegal não é novidade na terra indígena, que enfrentou pela primeira vez a sanha de depredadores na década de 1980. A nova invasão, porém, atingiu níveis inéditos de crescimento nos últimos anos: explodiu 3.350% apenas entre 2016 e 2020, aponta o MapBiomas, rede colaborativa de mapeamento de solo, fogo e água. A situação tende a ter se agravado de lá para cá. Relatório de entidades socioambientais com atuação na região indica que a área total destruída pelo garimpo na terra indígena Yanomami passou de 1.200 hectares, em outubro de 2018, para 3.272 hectares, em dezembro de 2021. A exploração se acentuou principalmente após o segundo semestre de 2020.
Elaborado pela Hutukara Associação Yanomami e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana, com supervisão técnica do Instituto Socioambiental (ISA), o relatório “Yanomami sob ataque: garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami e Propostas para Combatê-lo” reúne dezenas de fotos aéreas que denunciam a ação de garimpeiros na região, com uso de substâncias tóxicas como o mercúrio, abertura de pistas de pouso clandestinas, devastação de rios e matas e construções ilegais em meio a casas coletivas indígenas.
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Veja galeria de fotos do fotógrafo Bruno Kelly/Yanomami sob ataque:
Omissão de socorro
Tragédia brasileira: yanomami desnutrida recebe atendimento médico em cena chocante. Foto: redes sociais
O documento é considerado o estudo mais completo sobre a atuação de garimpeiros na terra dos yanomami. De acordo com o Ministério dos Povos Indígenas, 99 crianças da região morreram no ano passado, sobretudo por desnutrição, malária, pneumonia e diarreia. A pasta estima que ao menos 570 crianças foram mortas pela contaminação por mercúrio, desnutrição e fome nos últimos quatro anos, durante o governo de Jair Bolsonaro. O ex-presidente ignorou 21 pedidos de socorro e é apontado por organismos que apoiam os indígenas como principal responsável pela tragédia humanitária, que também ameaça outros povos.
“Além do desmatamento e da destruição dos corpos hídricos, a extração ilegal de ouro (e cassiterita) no território yanomami trouxe uma explosão nos casos de malária e outras doenças infectocontagiosas, com sérias consequências para a saúde e para a economia das famílias, e um recrudescimento assustador da violência contra os indígenas”, alertam as entidades no relatório publicado em abril do ano passado. Os indígenas convivem ainda com ataques e ameaças da mais famosa facção criminosa de São Paulo.
Demarcada em maio de 1992, a terra Yanomami ocupa uma área equivalente à de Portugal e se distribui entre os estados de Roraima e Amazonas. O levantamento revela que 273 comunidades, abrangendo mais de 16 mil pessoas, o equivalente a 56% dos yanomami, são prejudicadas diretamente pelo garimpo ilegal. O território é formado por 350 comunidades que somam 29 mil pessoas.
Incentivo ao crime
Uma série combinada de razões explicam o ritmo acelerado do garimpo na região, segundo o relatório:
1) O aumento do preço do ouro no mercado internacional;
2) Falta de transparência na cadeia produtiva do ouro e falhas regulatórias que permitem fraudes na declaração de origem do metal extraído ilegalmente;
3) Fragilização das políticas ambientais e de proteção a direitos dos povos indígenas e, consequentemente, da fiscalização regular e coordenada da atividade ilícita em Terras Indígenas;
4) Agravamento da crise econômica e do desemprego no país, produzindo uma massa de mão de obra barata à ser explorada em condições de alta precariedade e periculosidade;
5) Inovações técnicas e organizacionais que permitem as estruturas do garimpo ilegal se comunicar e se locomoverem com muito mais agilidade; e
6) A política do governo Bolsonaro de incentivo e apoio à atividade, apesar do seu caráter ilegal, produzindo assim a expectativa de regularização da prática.
Escolhas políticas
Terra Indígena Yanomami tem área equivalente à de Portugal. Foto: Google Maps
Para as entidades autoras do documento, o garimpo ilegal não é problema sem solução porque, com exceção do aumento do preço do ouro, os demais fatores que têm feito a exploração mineral avançar na região estão relacionados a escolhas políticas adotadas que favorecem a expropriação de recursos naturais.
“O garimpo dos dias atuais é uma atividade financiada por empresários com alta capacidade de investimento e que concentram a maior parte da riqueza extraída ilegalmente da floresta yanomami. Investigações da Polícia Federal revelaram que estes empresários são membros da elite econômica local ou figuras de outros estados com operações em Roraima.O dinheiro ilícito obtido com a prática é frequentemente lavado em negócios legais na cidade de Boa Vista ou alhures, como supermercados, postos de gasolina, restaurantes, entre outros”, diz o relatório.
Embora não haja estimativa de quanto é movimentado com a exploração legal de minérios na região, há cifras que dão dimensão da fortuna alavancada. Em 2021, o Ministério Público Federal processou um empresário de Boa Vista por envolvimento no garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami. As investigações indicaram que o acusado movimentou mais de R$ 425 milhões em dois anos, recurso incompatível com sua capacidade financeira declarada, segundo o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
O grupo liderado pelo empresário utilizava uma empresa de táxi aéreo e outra de poços artesianos para o transporte de insumos e mão de obra para as áreas de garimpo, serviço que era pago em ouro, apontaram as investigações.
Sem constrangimento
O relatório detalha os efeitos do garimpo em várias comunidades da terra indígena. A calha do rio Uraricoera é considerada a macrorregião mais impactada. Ela concentra mais de 45% do total de cicatrizes mapeadas, e também apresenta os maiores acampamentos e as mais complexas estruturas de apoio ao garimpo, com diversos canteiros, acampamentos e corrutelas.
Parte dessa vulnerabilidade, explicam as entidades, deve-se ao fato de que esse rio, diferentemente dos demais, pode ser acessado por via fluvial “sem quaisquer constrangimentos por parte dos órgãos de proteção”, uma vez que a Base de Proteção Etnoambiental (Bape) local encontra-se desativada. “Em 2017, o Ministério Público ajuizou uma ação que pede a reativação de todas as Bases de Proteção Etnoambientais (Bapes) da TIY, dentre elas a Bape Korekorema, que tem a função de controlar o acesso a este rio. A decisão do juiz foi favorável à reabertura, mas até o momento a União não cumpriu plenamente a sentença. A demora no seu cumprimento é um fator de grande fragilização da proteção territorial da TIY”, aponta o documento.
Pistolas e fuzis
Estima-se que 570 crianças morreram de fome e doenças como malária e pneumonia nos últimos quatro anos. Foto: Cosindi YY
O relatório também chama a atenção para a mudança no comportamento e perfil dos garimpeiros que atuam na comunidade do Palimiu. “Se antes apenas os barqueiros transitavam encapuzados, agora outros homens também o faziam, vestidos quase sempre de roupas pretas. As armas também haviam mudado. De espingardas de caça, passaram a circular com pistolas e fuzis. E, a abordagem nas comunidades tornou-se mais agressiva e violenta. Há relatos de garimpeiros bêbados invadindo casas e assediando mulheres, e de gritos de ameaça durante encontros furtivos no rio: ‘Vamos acabar com os yanomami’, diziam.”
Em 10 de maio de 2021, sete embarcações com homens armados, vestidos de coletes e balaclavas, se aproximaram da comunidade Yakepraopë e abriram fogo contra seus moradores, incluindo mulheres e crianças, por volta das 11 horas da manhã. Na fuga, duas crianças morreram.
PCC
“Áudios de WhatsApp que circulavam em grupos de garimpeiros, e que depois vieram a público, davam notícias sobre a participação de membros de organizações criminosas no ataque: ‘uma canoa da facção estava descendo com mais de 20 homens armados com metralhadoras e fuzis’ para ‘pegar o pessoal que roubou combustível’. Outras mensagens sugeriam a intenção dos criminosos de dar continuidade aos ataques e do desejo de vingança pelos homens feridos no revide com arco e flecha que os Palimiutheri conseguiram realizar.”
A suspeita de que a facção criminosa mais famosa de São Paulo estava por trás dos ataques fez com que as forças de segurança fossem acionadas. Ao chegarem em Yakepraopë, contudo, os policiais foram recebidos a tiros pelos homens do garimpo. Mesmo com o respaldo de decisões judiciais, as forças policiais mantiveram-se no local apenas de forma intermitente, visitando a comunidade quinzenalmente e permanecendo por poucos dias. Depois dos ataques, a região permaneceu a maior parte do tempo sob o signo do terror, vários outros aconteceram durante os meses de maio, abril, junho e julho.
Malária
Fonte: Relatório Yanomami sob ataque
A ação dos garimpeiros faz mal à saúde. Houve uma explosão de casos de malária nos pólos-base que compreendem a macrorregião Uraricoera, Palimiu e Waikás. Só no Palmiu, que reunia pouco mais de 900 pessoas em 2020, foram registrados 1.800 casos da doença. Ou seja, média de quase dois casos por pessoa.
Só em 2022 foram confirmados 11.530 casos de malária no Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami. O número corresponde a 40% de toda a população do território. Estima-se que mais de cinco mil crianças estejam desnutridas ou passem fome. Além de disseminarem substâncias tóxicas na região, garimpeiros também têm bloqueado a visita de profissionais de saúde às aldeias yanomami desde que assumiram, nos últimos anos, controle de polos de saúde e de pistas de pouso, segundo o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Yek’wana, Junior Hekurari Yanomami.
“Além disso, a situação de insegurança generalizada imposta pelo aumento da circulação de garimpeiros armados nas diferentes regiões da TIY tem causado transtornos ao atendimento à saúde às comunidades indígenas, com o total abandono de postos de saúde em alguns casos (a exemplo de Palimiu) e, inclusive, a ocupação das pistas comunitárias para a operação e abastecimento do garimpo (a exemplo de Homoxi). Também é comum a queixa do desvio de medicamentos reservados para os indígenas para atendimento de garimpeiros”, sustenta o relatório.
Fome
Também conhecida como paludismo, a malária compromete não apenas a saúde individual do doente, mas também a economia das comunidades que dependem da força de trabalho familiar para produzir sua subsistência. “Um homem que deixa de abrir um roçado no período de estiagem por estar debilitado pela malária terá no futuro maiores dificuldades de sustentar a si mesmo e os seus co-residentes, criando assim um ciclo vicioso de malária, crise econômica e fragilização social. É, pois, justamente no cenário de extrema vulnerabilidade que o garimpo avança e busca aliados entre jovens indígenas, acelerando ainda mais a tragédia local.”
Muitos indígenas também se veem impedidos de caçar ou plantar por causa das constantes ameaças feitas por garimpeiros. “Em muitos relatos, os membros das comunidades disseram sofrer com a restrição a seu livre trânsito na Terra Indígena, deixando de usufruir de áreas utilizadas para a caça, pesca, roça, e da comunicação terrestre e aquática com as comunidades do mesmo conjunto multicomunitário.”
Recomendações
O relatório indica uma série de medidas para controlar o assédio ao território e ao povo Yanomami. O primeiro passo, sugere, passa pela atuação eficiente e coordenada do Estado e a articulação entre os órgãos e agentes responsáveis. Veja alguns pontos recomendados contra o garimpo ilegal:
– Desenvolvimento e retomada de uma estratégia de Proteção Territorial consistente, capaz de deflagrar operações regulares de desmantelamento dos focos de garimpo e a manutenção das Bases de Proteção Etnoambientais nos locais estratégicos. A operação das BAPEs deve contar com o apoio dos Yanomami que vivem nas regiões afetadas , que podem e devem ser capacitados e remunerados para atuarem na vigilância e proteção do seu território, bem como para auxiliarem na obtenção de informações relevantes aos órgãos competentes pela fiscalização das atividades ilícitas associadas ao garimpo.
– Realização de operações de extrusão e repressão à atividade ilegal nas zonas atualmente impactadas. As operações devem: (i) inutilizar as pistas de pouso clandestinas e as aeronaves apreendidas, (ii) garantir a reocupação dos postos de saúde e pistas de voo comunitárias que hoje se encontram sob controle dos garimpeiros; (iii) promover a destruição total do maquinário utilizado na extração de ouro com o objetivo de impedir a rápida retomada da exploração, (iv) atuar rotineiramente, adaptando as áreas prioritárias com base em informações atualizadas sobre o avanço da atividade nas diferentes regiões da TIY.
– Ampliar a fiscalização permanente de aeródromos privados situados nos arredores da TI Yanomami que funcionam como centros de distribuição logística do garimpo ilegal, e a fiscalização dos postos que comercializam combustível de avião.
– Intensificar o papel das agências reguladoras na região, como a Anatel e a Anac, para identificar e responsabilizar pessoas envolvidas na instalação e manutenção de redes de radiofonia e internet que dão suporte aos garimpeiros.
i) no caso da Anatel, aprimorar a regulamentação da oferta de serviços de instalação e manutenção de internet em Terras Indígenas e demais áreas protegidas, estabelecendo mecanismos para identificar e impedir impossibilitando sua operação clandestina de redes de comunicação para apoio à logística do garimpo ilegal e outras atividades ilícitas nestas áreas; ii) no caso da Anac, fiscalizar a operação irregular de aeronaves e pistas de pouso, impossibilitando sua operação clandestina para apoio à logística do garimpo ilegal; iii) no caso da ANP, aprimorar o principal instrumento de controle de venda do combustível de viação, o Mapa de Movimentação de Combustíveis de Aviação (MMCA).
– Aperfeiçoar as normas legais e infralegais que regulamentam a cadeia do ouro no nível nacional. A atual legislação não garante transparência suficiente para a cadeia e, de certa forma, dá margem para operações fraudulentas e práticas de lavagem de dinheiro entre outros crimes. Entre as sugestões de mudança estão:
i) a implantação de um sistema de rastreabilidade de origem e conformidade ambiental e social da produção e do comércio de ouro; ii) a extinção do regime de Permissão de Lavra Garimpeira; e iii) a revogação da Lei 12.844/2013, que trata, dentre outras questões, do transporte e da comercialização de ouro dos garimpos, e que facilita a “lavagem de ouro”.
– Fomentar programas que ofereçam uma alternativa de renda para as comunidades indígenas vizinhas às áreas de garimpo, para neutralizar o assédio dos garimpeiros aos jovens Yanomami, por vezes seduzidos pelas promessas de bens e dinheiro que o trabalho no garimpo oferece.
– Retomar uma agenda positiva na região para garantir que as comunidades consigam se recuperar depois de anos de abusos, violência e destruição ambiental e sanitária.
Bolsonaro durante todo seu governo ― e mesmo antes ― incentivou de todas as formas o garimpo e a invasão das terras indígenas. Foto: Marcos Corrêa/PR
Bolsonaro
A Polícia Federal vai abrir investigação para apurar se o ex-presidente Bolsonaro e outros integrantes do seu governo praticaram crime de genocídio contra os Yanomami. A bancada do PT na Câmara pediu à Procuradoria-Geral da República a abertura de inquérito pelo mesmo crime contra Bolsonaro e a ex-ministra da Família, das Mulheres e dos Direitos Humanos Damares Alves.
Após anunciar um conjunto de medidas e visitar Roraima no último sábado, o presidente Lula desabafou sobre a situação de fome que testemunhou. “Se alguém me contasse que aqui em Roraima tinha pessoas sendo tratadas da forma desumana, como eu vi o povo Yanomami sendo tratado aqui, eu não acreditaria. É desumano o que eu vi aqui”. A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, já declarou que, além de ajudar a população local, o ministério trabalhará para “responsabilizar a gestão anterior por ter permitido que essa situação se agravasse ao ponto de chegar aqui”.
Veja a íntegra do relatório

Autoria
Edson Sardinha Diretor de redação. Formado em Jornalismo pela UFG, foi assessor de imprensa do governo de Goiás. É um dos autores da série de reportagens sobre a farra das passagens, vencedora do prêmio Embratel de Jornalismo Investigativo em 2009. Ganhou duas vezes o Prêmio Vladimir Herzog. Está no site desde sua criação, em 2004.
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