Há 30 anos, a Ferrari do São Paulo despedaçou os sonhos do Barcelona no Mundial de 1992 – Trivela

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“Na Holanda, costumamos dizer que, se você vai ser atropelado por um carro, é melhor que seja por uma Ferrari”. Esta é a frase clássica de Johan Cruyff, depois da vitória do São Paulo sobre o Barcelona, por 2 a 1, no Mundial de Clubes de 1992. É, também, a apreciação do que havia acabado de acontecer. O confronto entre duas grandes mentes do futebol, filosoficamente parecidas, entusiastas do bom futebol e do jogo limpo, comandantes de grandes craques. O resultado só poderia ser uma partida para a história.
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O Barcelona de Cruyff era obviamente inspirado nos conceitos do Futebol Total do Ajax e da Seleção Holandesa, do qual ele foi um dos símbolos. Embora seja exagero afirmar que Telê Santana bebeu da mesma fonte, existiam conceitos parecidos naquele São Paulo. A troca constante de posições no ataque era uma das armas, com Cafu e Müller invertendo os lados, Raí entrando na área e Palhinha recuando para o meio-campo. Telê não tinha pudor em improvisar. “Eu joguei de volante, na zaga, de quarto-zagueiro”, conta o ex-zagueiro Ronaldão, em 2012, para este autor. “Ele não tinha vergonha de escalar o jogador em outra posição. Vai de lateral, de volante, de atacante. Sempre tinha um improviso e o jogador tinha que fazer a função.”
O Dream Team do Barcelona, que já era bicampeão nacional e havia conquistado o primeiro título europeu do clube, era mais carrossel. “Fixo, mesmo, apenas o goleiro Andoni Zubizarreta e o central holandês Ronald Koeman”, analisava o jornal Folha de S. Paulo em 6 de dezembro de 1992. “O mister (Cruyff) utiliza apenas três beques – além de Koeman, Ferrer e Juan Carlos. Cruyff gosta de concentrar cinco ou seis jogadores no meio-campo.
O forte Eusébio Sacristán e o versátil Guillermo Amor funcionam como volantes. José-Maria Bakero e Aitor Beguiristain se encarregam do apoio via laterais. O precioso Josep Guardiola funciona como catalisador das reações de ataque, que tem o habilidoso búlgaro Hristo Stoichkov e o inteligente dinamarquês Michael Laudrup ao lado do rápido ala Juan Antonio Goicoechea”.
A comissão técnica são paulina planejou a viagem ao Japão nos mínimos detalhes. A delegação fez a primeira refeição em solo asiático assim que chegou, em 7 de dezembro, por volta das 13h30 (horário local). Depois, realizou um treinamento em um bosque para manter os jogadores acordados até a noite para ajudar na adaptação ao fuso horário. O frio também era um problema, já que a previsão para Tóquio naquela época do ano era próxima a zero grau. Tanto que o goleiro Zetti decidiu utilizar na final um colete comum a mergulhadores para se proteger da temperatura baixa, que afinal acabou ficando em suportáveis 5 graus positivos
Antes do jogo, houve provocações dos jogadores do Barcelona, talvez um pouco sentidos pela goleada que sofreram do São Paulo (4 a 1), no troféu Tereza Herrera, em agosto daquele mesmo ano. “O São Paulo não assusta. É apenas um time com bom entrosamento e sem nenhum jogador de destaque”, havia dito Cruyff. Adílson e Cafu confirmam as provocações. “Eles acabaram cutucando a gente”, disse Cafu, em 2012.
“Disseram que o resultado do Tereza Herrera não aconteceria de novo, que era pré-temporada, que não jogariam duas vezes contra aquele timinho brasileiro, mas foi o mesmo que ganhou deles no Mundial. Eles tinham essa mania de não respeitar tanto os times brasileiros”. Telê Santana, questionado por repórteres no Japão, respondeu que “o São Paulo não era o Zaragoza nem o Cádiz”.
Cruyff enviou seu assistente técnico Toni Bruins para observar o São Paulo em uma partida do Campeonato Paulista, contra o Palmeiras. Ficou impressionado com Cafu. O Tricolor venceu por 4 a 2, e o lateral-ponta-direita participou dos quatro gols do seu time. Era o único jogador do time brasileiro que o holandês ficou com vontade de contratar. Na avaliação do seu olheiro, o Barcelona deveria explorar os lançamentos de Koeman para Stoichkov e Laudrup, explorando o “nervosismo” da defesa do São Paulo. Os tricolores também conheciam o adversário. Sabiam que esse expediente seria utilizado e tinham Toninho Cerezo, que havia enfrentado os catalães quando defendia a Sampdoria.
O Barcelona saiu na frente. Aos 11 minutos, Stoichkov avançou pela intermediária com a bola e chegou à meia-lua. O goleiro Zetti se adiantou, antecipando um chute forte, mas o búlgaro pensou rápido e teve a categoria necessária para encobrir o arqueiro do São Paulo e abrir o placar. “A gente sabia que uma hora eles iam cansar, cansavam fácil, não tinham a preparação física dos brasileiros”, lembrou Adílson. “Quando fzeram 1 a 0, a gente manteve a tranquilidade. Éramos um time maduro.”
Aos 27, apoiado pela maioria das 60 mil pessoas presentes, inclusive os japoneses, o São Paulo empatou a partida. Müller recebeu na esquerda e avançou, forçando o zagueiro espanhol Ferrer a entrar na área. Fingiu que sairia pela direita, mas buscou à linha de fundo para cruzar. Raí usou o corpo para desviar a bola e empatar. Depois da partida, ele disse que fez um inédito “gol de púbis”. “Raí completou de barriga,de púbis, de coxa, ninguém sabe”, descreveu Cafu. “Não importa muito, foi gol e um golaço. O gol que abriu o caminho para que pudéssemos ganhar aquele título”.
Faltando 11 minutos para o fim da partida, Palhinha sofreu uma falta na entrada da área, pela direita. Raí olhou para Cafu e decidiu cobrar em dois toques. Uma jogada que ele treinava todos os dias, mas nunca tinha funcionado durante os jogos. Daquela vez funcionou. A bola entrou no ângulo. No contrapé do goleiro Zubizarreta.
“O ano inteiro não tinha dado certo aquela falta ensaiada”, lembrou Cafu. “Tentávamos o ano todo e nunca dava certo. Telê em determinado ponto nos disse: ‘Façam o que quiserem, nunca dá certo isso mesmo’. Naquele momento, eu e Raí nos olhamos e combinamos. Vi Zubizarreta dar um passinho e disse: só vou parar, é com você. Eu parei e quando ele chutou, já vi que a bola ia entrar.”
“Quando eu toquei a bola, eu não tirei da barreira, joguei mais para o meio”, explicou Raí depois do jogo. “O goleiro perdeu a visão da bola e se movimentou para tentar vê-la. Ele pensou que eu ia jogar de um lado tirando da barreira e deu um passo. Bati sobre a barreira e peguei bem na bola. Quando ela passou, já sabia que era gol”.
Além da festa são-paulina, a vitória foi importante para a autoestima do futebol brasileiro, que estava há 22 anos sem conquistar um título mundial e ainda lamentava a derrota para a Argentina, na Copa do Mundo de 1990. A Gazeta Esportiva escreveu, no dia seguinte, que a seleção brasileira deveria se inspirar no São Paulo para o Mundial de 1994, nos Estados Unidos.
“Esse futebol campeão do mundo veste a camisa do São Paulo e tem uma cara. A cara de Telê Santana”, escreveu. A Folha de S. Paulo destacou que Telê “dobrou” o amigo Cruyff e que o “futebol brasileiro voltou ao Olimpo nove anos depois do seu último título mundial de primeiro escalão, obtido pelo Grêmio. As duas equipes atuaram conforme os scripts de seus treinadores, adeptos do futebol ofensivo e rápido. Inspirados na Laranja Mecânica da Holanda, Telê e Cruyff foram os maestros de uma sinfonia repleta de tabelas dinâmicas, jogadas ensaiadas, deslocamentos e dribles”. E Cruyff arrematou: “Agora, o brasileiro pode sorrir”.

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