Hacker da Vaza-Jato se aliou a militares para tentar achar falhas em urnas – VEJA

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Uma das bolsonaristas mais fiéis e radicais no apoio ao presidente Jair Bolsonaro, a deputada federal Carla Zambelli (PL-SP) segue com a sua pregação golpista, inconformada com a atuação dos tribunais superiores e com o resultado das urnas. Depois de empunhar uma arma nas ruas de São Paulo contra um apoiador de Luiz Inácio Lula da Silva com quem discutira na véspera do segundo turno, Zambelli usou as redes sociais para estimular os atos antidemocráticos pelo país, teve todos os seus perfis bloqueados pela Justiça e viajou às pressas para os Estados Unidos. Em Nova York, tentou se infiltrar (sem sucesso), na segunda 14, no Lide Brazil Conference, evento do qual participavam ministros do Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de constranger Alexandre de Moraes, e ainda protocolou uma representação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra os magistrados. Segundo ela, os conservadores brasileiros — muitos dos quais têm contestado as eleições — são “censurados” pelo Judiciário.
Na missão rocambolesca de tentar comprovar a todo custo que as eleições foram fraudadas ou, ao menos, que são passíveis de fraude, Zambelli vem contando desde agosto com a ajuda de Walter Delgatti Neto, o hacker que ficou célebre com a “Vaza-Jato” e que se converteu ao bolsonarismo depois de se sentir abandonado pelo PT. Na visão dele, a esquerda não foi grata o suficiente pela divulgação das mensagens da Lava-Jato que contribuíram para livrar Lula da Justiça. Como comprovou reportagem publicada por VEJA, Delgatti se encontrou às escondidas com Bolsonaro no Palácio da Alvorada em 10 de agosto, em reunião articulada por Zambelli. Ela chegou a comemorar a parceria no Twitter e prometeu desdobramentos.
Desde o início, a operação coordenada pela parlamentar tinha como objetivo desacreditar as urnas, aproveitando a credibilidade que Delgatti tinha conquistado junto a setores da esquerda. Esse foi o assunto tratado entre ele e Bolsonaro na conversa no Alvorada, segundo relatos do próprio hacker a pessoas próximas. “Eu vou contra as urnas, elas (as urnas) não conseguirão mais se defender porque quem está falando agora é o mesmo que eles chancelaram na Lava-Jato”, disse a interlocutores. Com despesas pagas por Zambelli e sob orientação dela, ele passou um período em Brasília e abriu formalmente uma empresa, a Delgatti Desenvolvimento de Sistemas, em 22 de agosto.
Os desdobramentos prometidos pela parlamentar ocorreram já na sequência do encontro com o presidente. Ao sair da reunião no Alvorada, o hacker foi levado ao Ministério da Defesa para falar sobre as urnas com os militares, incumbidos de encontrar falhas no sistema. Empregar hackers arrependidos de seus crimes para ajudar no aperfeiçoamento de sistemas é um recurso comum em grandes empresas. A diferença neste caso é que a participação de Delgatti na Defesa não era conhecida nem pelo TSE, que àquela altura estava em tratativas públicas com os militares sobre a inspeção do código-fonte das urnas (em 12 de agosto, a Defesa pediu à Corte para estender o prazo de acesso a essa parte do sistema, o que foi atendido). No caso de Delgatti, há um outro complicador: é público que ele está proibido pela Justiça de acessar a internet e de se ausentar de Araraquara (SP) por causa do processo em que é réu pela invasão de contas no Telegram.
A partir da ida à Defesa, o hacker encampou o discurso — corrente entre alguns militares — de que o código-fonte responsável pelo funcionamento das urnas podia, sim, conter um “código malicioso” que roubasse votos de Bolsonaro para Lula. Dentro dessa teoria conspiratória, uma espécie de chave secreta embutida nos equipamentos estava preparada para mudar a decisão dos eleitores do presidente em favor do petista. Uma maluquice sem pé nem cabeça. Mesmo sem ter conhecimento técnico para fazer a análise de sistemas complexos como o eleitoral, embora entenda bem de informática, Delgatti passou a dizer também que estava convencido de que somente um teste de integridade feito na hora e no local da votação, com a biometria de eleitores reais, seria capaz de mostrar se os equipamentos estavam registrando os votos corretamente. Esse era o principal pleito da Defesa junto ao TSE e acabou sendo aceito parcialmente por Moraes. O ministro determinou que o teste de integridade com biometria fosse realizado, mas em pequena amostra das urnas, para não atrapalhar a votação.
Como se viu, nenhuma fraude ocorreu durante o processo de apuração. Após terem se calado no primeiro turno, os militares produziram um relatório — divulgado nove dias depois da segunda votação — afirmando que não encontraram problemas relevantes, apesar de terem criticado a forma como o TSE lhes concedeu acesso ao código-fonte e a amostra pequena usada nos testes. O documento jogou um balde de água fria nos militantes bolsonaristas que, depois de bloquear rodovias, migraram para a frente dos quartéis para pedir uma “intervenção federal”. O impacto foi tão ruim que, no dia seguinte, a Defesa soltou outra nota dizendo que o fato de não ter encontrado fraudes não significava que elas não possam existir. A afirmação serviu para animar os golpistas na rua, mas juridicamente não tem nenhum impacto. Moraes, no evento em Nova York, ironizou: “Pode haver vida extraterrestre? Pode”.
A maneira como Delgatti participou da movimentação arquitetada por Zambelli mostra como alguns órgãos do governo estavam envenenados para desacreditar as urnas. Segundo fontes ouvidas por VEJA, o hacker teria sido conduzido à Defesa pelo coronel Marcelo Costa Câmara, assessor especial de Bolsonaro na Presidência. Dentro do Ministério da Defesa, onde chegou por uma portaria na garagem, Delgatti teria tido um encontro com o titular da pasta, o ministro Paulo Sérgio Nogueira, e conversado com um grupo que incluía o coronel Eduardo Gomes da Silva — oficial do Exército que não tem cargo na pasta. Silva é secretário especial de Modernização do Estado, vinculado à Secretaria-Geral da Presidência, e ficou conhecido em julho de 2021 ao aparecer ao lado de Bolsonaro na live em que o presidente lançou suspeitas contra as urnas, sem apresentar provas. Questionado por VEJA, o Ministério da Defesa não quis se pronunciar sobre o caso. Já a Secretaria-Geral da Presidência disse, em nota, que “não tem conhecimento dos fatos”. Na semana que passou, um grupo de advogados pediu ao STF o impeachment do ministro da Defesa, e o deputado Marcelo Calero (PSD-RJ), seu afastamento do cargo.
No lance mais arriscado de sua missão, Delgatti tentou invadir, em setembro, a intranet do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro, após detectar supostas brechas que lhe permitiriam acessar a rede, mesmo que de forma superficial. A ideia, novamente, era só causar barulho, sustentando que o sistema não era seguro, ao contrário do que dizia o TSE. O plano não prosseguiu, possivelmente porque não teve sucesso. Tampouco prosperou a ideia de usar o hacker como garoto-­propaganda contra as urnas durante a campanha. Procurados pela reportagem, Delgatti e Zambelli não se manifestaram.
A operação com o hacker é mais um capítulo vergonhoso na triste crônica do envolvimento dos militares em assuntos em que não deveriam se meter, como as eleições. No feriado da última terça, 15, a Esplanada dos Ministérios teve de ser interditada em razão da concentração de manifestantes em frente ao quartel-general do Exército. No mesmo dia, o general Eduardo Villas Bôas, ex-comandante do Exército entre 2015 2019 e ex-assessor especial no Gabinete de Segurança Institucional (GSI) no governo Bolsonaro, acenou aos golpistas com um post no Twitter no qual elogiava as manifestações. Villas Bôas ficou célebre por um outro tuíte, em abril de 2018, quando “advertiu” o STF sobre os riscos de a Corte acatar pedido de Lula contra a sua prisão pela Lava-Jato. Como se sabe, o Supremo negou o pedido, Lula ficou preso e foi impedido de disputar a eleição.
Por sinais trocados emitidos por gente como Villas Bôas, a chama da “revolução” continua acesa na cabeça de malucos que vivem numa realidade paralela. De acordo com interlocutores de Zambelli, a parlamentar e seus apoiadores, Delgatti incluso, continuam apostando que os atos nas ruas vão crescer a ponto de impedir a posse de Lula em 1º de janeiro. Na vida real, o novo governo já deu passos importantes na transição de poder e não há possibilidade de nenhum golpe no horizonte. A operação hacker não passou de um grande plano tabajara.
Publicado em VEJA de 23 de novembro de 2022, edição nº 2816
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