Jó sofreu todos os infortúnios possíveis, menos um: a política – Gazeta do Povo

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Quando me perguntam como eu consigo escrever tanto, respondo com um muxoxo, mudo de assunto ou dou uma desculpa qualquer. Um pouco de modéstia, outro tanto de timidez, aqui e ali algo de espanto. O que não digo – para não parecer arrogante ou presunçoso, mesmo parecendo – é que me culpo por escrever tão pouco. Porque há dias como hoje, em que as palavras parecem um daqueles jatos d’água antimanifestações (um dos meus sonhos é pilotar aquilo) e sinto que sou capaz de escrever mil textos sobre mil assuntos.
Não sei se já contei aqui e, se não contei, conto de novo: tenho um aplicativo de notas no qual jogo todas as ideias que me ocorrem ao longo do dia. Há dias em que são muitas; há dias em que são nenhuma. Assim como há ideias que ressuscitam com apenas um lembrete curto e outras que, apesar do lembrete elaborado, permanecem comatosas, à espera de um lampejo que me faça dizer “ah, sim, claro, claro”.
Pegue, por exemplo, a ideia que dá título a este texto que você já se arrependeu de ter começado a ler, mas, já que começou, vai até o fim. É uma anotação de quatro meses atrás – me informa o aplicativo. Feita às 22h02 da madrugada de uma quinta-feira. E, no entanto, apesar de todos esses detalhes cronológicos inúteis, não sei do que se trata exatamente. Digo, sei que Jó sofreu todos os infortúnios possíveis, menos o da política. Mas não tenho a menor ideia de como transformar isso em texto palatável aos meus leitores lindos, inteligentes e maravilhosos. (Chave Pix tal e tal).
É. Não tem jeito. Vou ter que me levantar e ir à biblioteca. Que, no caso, consiste de uma cristaleira mirrada na qual adormecem uns poucos livros autografados por amigos que talvez nem sejam mais amigos (política, sabe como é) e o Kindle abarrotado de leituras interrompidas. Mas acho tão chique quem fala que tem em casa uma biblioteca… Eis que na parte de baixo da cristaleira, escondidos atrás de corujas de pelúcia, moleskines virgens e um ioiô de madeira que eu nem sabia que tinha, encontro vários livros sobre o mesmo assunto: Jó.
Pois então. Tive essa fase aí em que era obcecado pela questão do sofrimento. Tenho Jó em português e Jó em hebraico (para quê?!). Tenho Jó romanceado e um livro sobre a influência de Jó na literatura Ocidental. Só não tenho Jó em quadrinhos porque… olha bem pra minha cara, né? Tenho também livros que, apesar de não trazerem Jó no título, são sobre Jó. Meu preferido é “Por que coisas ruins acontecem a pessoas boas”, de Harold Kushner. Obrigado por perguntar. C. S. Lewis também escreveu um livro sobre o sofrimento, dizem. Mas esse eu não tenho.
Foi uma fase horrível, essa. E não quero falar dela. Melhor me ater à ideia que virou tema e título desta crônica: Jó sofreu todos os infortúnios possíveis, menos um: a política. Você conhece a história de Jó, né? Do homem cuja paciência e fé são postas à prova dia após dia e tal. Pois bem. Num indeterminado momento há quatro meses, por algum motivo achei por bem ressaltar que aos sofrimentos de Jó falta um que nos apoquenta um bocado. Ganha um doce quem adivinhar qual.
Sim, a política! [Dá o doce para o leitor perspicaz]. Não consta no livro bíblico que ele tenha sido obrigado a suportar o que nós suportamos todos os dias. A provocação de petistas ingênuos que acham que não serão afetados pelas políticas de um terceiro mandato de Lula. Rebeldes sem causa alimentados à base de leite de soja invadindo igrejas em manifestação política. As ofensas desumanizadoras da legião de hipócritas sinalizando virtude nas redes sociais. Os absurdos cotidianos dos tribunais superiores. A impotência diante de um parente que, não adianta, por mais que você explique para ele desde as atrocidades de Holodomor até o desastre econômico de Dilma Rousseff, ainda assim insiste em exibir todo orgulhoso o brochão com a estrela vermelha.
Pelo que me lembro do livro bíblico, nos debates teológicos que se seguem às muitas tragédias e desgraças enfrentadas por Jó, os amigos não o consolam com ideias de ressentimento ou inveja – ideias comunistas. Ninguém fala para Jó votar no PPB (Partido dos Personagens Bíblicos) para “voltar a comer picanha e tomar uma cervejinha no fim de semana”. Não há menção a qualquer programa de renda mínima ou ameaça dos sem-terra. Ou seria sem-areia? Jó não tem de enfrentar militantes abortistas nem sofre “censura do bem” ao expressar sua fé inabalável.
Não estou minimizando (não confundir com mimizando) os sofrimentos de Jó – que em muitas noites me serviram de inspiração e consolo. Tampouco estou dizendo que os sofrimentos de Jó não eram nada em comparação a uma tarde de discussões com esquerdistas nas redes sociais. Só estou dizendo o que estou dizendo: Jó sofreu todos os infortúnios possíveis, menos um: a política. O que me leva a crer que a política talvez não seja necessariamente um infortúnio. Nós é que a fazemos assim.
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