Júlio Kunz: o hamburguense que se tornou lenda no futebol brasileiro – Diário de Canoas

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Natural de Novo Hamburgo, Alisson Becker carrega em seu currículo a marca de ter defendido a seleção brasileira como titular em duas copas consecutivas. Mas, ele não é o primeiro goleiro da cidade a marcar história na seleção. Antes mesmo de existir Copa do Mundo, Júlio Kunz se tornou um dos primeiros campeões da história do time que representa o País, que naquele tempo vestia branco, e não amarelo. Foi em 1922, quando ele levantou a taça do campeonato Sul-Americano, atual Copa América. Na época, o Brasil se sagrava bicampeão do torneio.

Kunz na seleção
Kunz na seleção Foto: Arquivo Pessoal

A convocação de Kunz para aquele time era algo quase natural, pois naquele momento ele era considerado o melhor goleiro do País, sua agilidade lhe rendeu o apelido de “Gato”, já o conjunto das habilidades que incluía também uma elasticidade impressionante em uma atleta muito alto, lhe rendeu mais um apelido “El Colosso”. Mas embora sua trajetória tenha começado nos gramados hamburguenses, foi no Flamengo-RJ que ele alcançou a idolatria, sendo considerado um dos grandes ídolos de um período amador do clube. O Grupo Sinos reconstrói nessa reportagem desse jogador que, muito antes dos superastros e transações milionárias por atletas, desbravou o Brasil e o mundo em nome do futebol.
Nascido no dia 3 de setembro de 1897, no local onde hoje fica o bairro Hamburgo Velho, Kunz começou a jogar em 1915 no FBC Esperança de Hamburgo Velho, e depois viria a se tornar atleta do Novo Hamburgo. Pesquisador e escritor de futebol, Gilson Romano Warken encontrou nas atas do time os primeiros registros da participação de Kunz no futebol amador da cidade.
Três anos após o início como atleta na cidade, ele foi convidado para fazer um teste no segundo time do Inter, mas acabou no rival. “O Grêmio ficou sabendo e o contratou para o seu primeiro time”, conta Warken sobre a saída em 1919.
Os registros, raros e difíceis de encontrar, dão conta que a passagem de Kunz pelo clube da capital foi curta. Depois de se dividir por alguns meses entre partidas pelo Grêmio, o próprio Novo Hamburgo e o Taquarense, em 1919 ele juntou as malas e foi até o Rio de Janeiro. “Veio para cá jogar futebol, esse era o objetivo dele”, conta o neto, também Júlio Kunz, que também fez sua história no esporte e preserva o legado do avô.
Para quem está acostumado com as transferências de jogadores nos dias atuais pode pensar que Kunz saiu de Porto Alegre com contrato fechado junto ao Flamengo. Mas estamos falando do período amador do futebol. Kunz desembarcou no Rio de Janeiro sem muitas perspectivas, como era comum aos atletas daquele período. Primeiro jogou em um pequeno time carioca, mas isso durou pouco.
No dia 4 de abril de 1920, o hamburguense estreou pelo clube no qual se tornaria ídolo. A imprensa carioca daqueles tempos resolveu levar ao pé da letra a pronúncia alemã do sobrenome, e Kunz virou “Kuntz” nos jornais da época.

No Flamengo Kunz teve seu age em três temporadas
No Flamengo Kunz teve seu age em três temporadas Foto: FOTOS divulgação

Mas o mais importante mesmo foi sua atuação que lhe rendeu o título de “o heróe da tarde” pelo jornal Gazeta de Notícias, como lembra o jornalista esportivo e flamenguista apaixonado, Emmanuel do Valle, autor do blog Flamengo Alternativo, que resgata a história de ídolos menos badalados do time. Aliás, suas habilidades lhe renderam diversos apelidos, “Gato”, “El Tigre” “Colosso”, são alguns que ele acumulou durante a carreira.
Kunz atuou por três temporadas no rubro-negro carioca, ajudando a derrubar a hegemonia do Fluminense naquele começo de século. No Flamengo se transformou em jogador  fundamental do time na conquista de títulos. “No período amador, ele é um dos maiores goleiros do Flamengo, para mim, é primeiro ele e depois o Amado, que o substituiu. O Kunz foi o primeiro goleiro a ganhar o status de ídolo”, lembra Valle quando questionado sobre a importância do gaúcho para o time. Atuações em alto nível e idolatria que o levaram à seleção brasileira já em 1921, e no ano seguinte viria a consagração.
As primeiras convocações vieram ainda em 1921, e Kunz chamou atenção rapidamente em jogos internacionais disputados na América do Sul. Era um período em que o futebol brasileiro ainda não conhecia a Europa, e os europeus ignoravam o futebol dos trópicos. 
No hemisfério sul, Kunz conquistou a admiração dos vizinhos. “Consta que em 1921 na Argentina, jogou tão bem, que o maestro argentino Ganaro, compôs um tango em sua homenagem, chamado ‘El Colosso’, que fez sucesso em Buenos Aires”, conta Warken.
Toda essa destreza o levou a ser convocado para o time que disputaria o Sul-Americano de 1922, quando o Brasil buscava seu segundo título do torneio. O torneio foi o embrião do que hoje conhecemos como Copa América. Ele dividiu a missão de defender o gol brasileiro com Marcos Carneiro de Mendonça, e estava no mesmo time que Arthur Friedenreich, o primeiro grande craque da seleção. Na partida final, contra o Chile, Kunz não foi vazado e o ataque brasileiro marcou três vezes, terminando o campeonato com duas vitórias e três empates, o suficiente para levantar o bicampeonato. Ao longo da carreira, Kunz vestiu a camisa da Seleção em 11 partidas.
O auge da carreira de Kunz aconteceu mesmo nas três primeiras temporadas no Flamengo, mas mesmo que não vivesse o melhor momento como atleta, em 1925 ele foi o escolhido pelo Club Athletico Paulistano para integrar a comitiva da primeira excursão internacional de um clube brasileiro. Junto com ele estava Arthur Friedenreich, o primeiro grande craque brasileiro que assim como Kunz também tinha descendência alemã, mas misturava com os traços da mãe mulata (termo utilizado na época).

A viagem à Europa foi feita de navio, e é considerada um sucesso, uma apresentação do futebol brasileiro ao Velho Mundo. A viagem foi feita de navio e a excursão brasileira foi arrasadora, com goleadas e o time apresentando ao Velho Mundo o que era o futebol brasileiro.

Margot Schütz 84 anos, é uma das familiares de Kunz, que ainda vive em Hamburgo Velho. Desde que casou, ela deixou o sobrenome familiar, mas conseguiu manter contato com parte da família. Foi dela a primeira pista para saber um pouco mais de quem era esse personagem na vida pessoal.
Mais novo em uma família de 10 irmãos, ele não fugiu às características de seus familiares, já que muitos eram envolvidos com o esporte. O pai deles, o primeiro Júlio dessa linhagem, no entanto marcou época na cidade e hoje nomeia uma rua de Novo Hamburgo. Pouco se sabe sobre a vida pessoal de Kunz, pois mesmo dentro da família sua história era pouco falada. Das poucas pistas que se tem, é de que ao chegar ao Rio de Janeiro ele se estabeleceu na Tijuca, um tradicional bairro de trabalhadores. Ele teve três filhos: Hugo, Maria Helena e Antônio Guilherme, o mais novo que tinha apenas cinco anos quando Julio morreu em 1938.
Júlio Kunz Neto é justamente filho de Antônio, que ainda vive na Tijuca, e guarda com muito carinho o legado do avô, mesmo que sua lembrança hoje se resuma a recortes de jornais, retratos envelhecidos e poucos relatos. De acordo com Júlio, sua avó falava pouco sobre o marido, talvez fruto de uma mágoa pela dedicação que o velho Kunz deu ao futebol, com pouco retorno financeiro, já que o marido tinha uma relação romântica com o esporte e muito pouco profissional naquele esporte amador. “Ela contava que o vovô era muito justo e muito comprometido com a palavra dele, ele dizia que um aperto de mão valia mais que qualquer papel assinado. Teve um período que o Vasco o convidou a fazer parte do elenco e com isso daria a ele uma loja comercial no Centro da cidade, e ele negou. Ele dizia que a camisa dele não tinha bolso”, lembra.
A mágoa com futebol levou Ondina a proibir os filhos a se envolverem com esporte, especialmente futebol, como era o desejo do caçula. Mas mesmo que tenha impedido um filho, o espírito esportivo se manteve na família, já que o Julio Neto Kunz foi jogador e hoje é treinador de voleibol. “Essa memória dele dentro de casa sempre foi muito presente, porque papai sempre trazia a lembrança dele ligada ao futebol.”
Outra marca deixada na família foi a paixão clubística. “Lá em casa somos todos flamenguistas por causa do vovô.”

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