Lula pode voltar ao Planalto ainda mais distante dos evangélicos – UOL
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Obra da série ‘Inside Out’ (2022), de Luciano Figueiredo Divulgação
Repórter especial, está na Folha desde 2010, passando por diversas editorias. De 2013 a 2014, assinou o blog Religiosamente. Em 2016, foi correspondente do jornal em Nova York. Autora de “Talvez Ela não Precise de Mim: Diários de uma Mãe em Quarentena” (Todavia)
[RESUMO] Larga vantagem de Bolsonaro sobre Lula entre evangélicos mostra, mais uma vez, a histórica dificuldade da esquerda em se relacionar com esse segmento religioso, que representa quase um terço da população brasileira. Preconceitos arraigados em grupos progressistas interditam o debate, o que pode minar as chances da esquerda em eleições futuras.
Se o Messias que tantos cristãos chamam de mito vivesse nos tempos do Messias raiz, teria passado reto pela sepultura de Lázaro: “E daí? Não sou coveiro“. Também mandaria o apóstolo Judas depositar 89 mil moedas na conta da irmã Maria Michelle. E não seria muito afeito a esse camarada que o povo diz ter vindo lá da Galileia. “Ele inventou um tal de Bolsa Família com peixes e está dando comida para os pobres.”
O pastor Paulo Marcelo Schallenberger continua a construir seu pouco sutil, mas muito eficaz contraponto entre Jair Messias Bolsonaro, o presidente que diz pôr Deus acima de todos, e Jesus Cristo, alguém que, nesta pregação de alta voltagem política, jamais subscreveria uma linha da retórica bolsonarista que capturou o evangelicalismo no Brasil.
Paulo começou o ano como uma aposta do PT para reerguer pontes dinamitadas entre a esquerda e o eleitorado evangélico. A um mês e meio da eleição, isolado pelo partido, veio pregar em uma microigreja da periferia de Itaquaquecetuba, na Região Metropolitana de São Paulo.
Na véspera, havia enchido o carrinho do mercado com pão de forma, biscoito água e sal, maionese, suco de caixa e maçã. Serviu o café da manhã na igreja da pastora Neuza, que precisa do dízimo para pagar a conta de luz do templo, ele diz. Nada próximo dos milhões de reais que irrigam as contas bancárias das denominações mais parrudas.
Na volta, sem tirar os olhos da estrada à sua frente, o pastor admite que não está satisfeito com o tratamento que o PT tem dado aos evangélicos na campanha para eleger Luiz Inácio Lula da Silva.
Enquanto isso, o bolsonarismo tenta se entranhar por todos os poros da religião escolhida por 1 em cada 4 eleitores. “Hoje, a igreja sabe o nome dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, mas não sabe o nome dos 12 apóstolos”, ironiza, evocando a corte que coleciona embates com o presidente da República.
Paulo foi apresentado a Lula por um Moisés, Moisés Selerges, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Teve uma reunião com o ex-presidente em 13 de dezembro, às 13h. A soma dos numerais que compõem os 580 dias que Lula ficou preso, aliás, dá 13. Jesus e seus 12 apóstolos também somam 13. Tudo lhe parecia predestinado.
Surgiu a ideia de fazer um podcast voltado a evangélicos, que seria gravado na sede nacional do PT, para onde Paulo levou a Folha em fevereiro. No mesmo dia, visitou gabinetes de petistas no Congresso. Encontrou todas as portas abertas.
Seu embarque na campanha trouxe algum alívio para evangélicos progressistas que não querem mais ser um gueto eleitoral. O PT tem bons aliados no segmento, mas ninguém páreo à popularidade do batalhão de pastores graúdos que fecharam com Bolsonaro.
Naquela semana, o Observatório Evangélico, do antropólogo Juliano Spyer, publicou textos elogiosos à entrada do pastor no time lulista. O PT ganhava acesso ao “chão de fábrica” pentecostal, entusiasmou-se o pastor e teólogo Kenner Terra. O escolhido “é o mais qualificado para furar a resistência ao PT”, vaticinava o também pastor Alexandre Gonçalves, à frente do grupo cristão do PDT de Ciro Gomes. Spyer, colunista da Folha, gostou do que viu: o partido “acerta trazendo amigo de Feliciano para dialogar com evangélicos”.
Paulo é até hoje um bom amigo do deputado Marco Feliciano (PL-SP), um dos interlocutores mais orgulhosos de Bolsonaro com evangélicos. Em 2020, após uma passagem pelo cristão PSC, filiou-se ao mesmo partido que abrigava Feliciano na época, o Podemos, para tentar se eleger vereador.
Ele é cria do Gideões Missionários da Última Hora, congresso pentecostal que ajudou a projetar nomes como Feliciano, a ex-deputada Flordelis e Gilmar Santos, pastor modelo para Paulo, envolvido no escândalo do Ministério da Educação. Os missionários que por ali passam costumam dominar a pregação performática, que, para o pastor Gonçalves, lembra a de Cabo Daciolo, seu colega no PDT.
Ou seja, Paulo tem algum fôlego em um mar pentecostal onde o bolsonarismo nada de braçadas. Por um tempo, acreditou-se que poderia ser a agulha a furar uma bolha evangélica que parece impenetrável para o campo progressista. Tido como oportunista, impressão fortalecida após anunciar sua candidatura a deputado federal pelo Solidariedade, foi logo perdendo a moral em uma legenda desconfiada de forasteiros.
Esta, porém, não é a história de um pastor que deu com a cara na porta de uma estrutura partidária tão corpulenta quanto a do PT. A jornada solitária de Paulo é sintoma de uma esquerda que ainda não sabe, e em parte não quer, se entrosar com a massa religiosa que mais cresce no país.
A primeira bancada evangélica remonta à Assembleia Nacional Constituinte, que redigiu a Constituição de 1988. Esse nicho cristão, que ainda não chegava a 10% dos brasileiros, começou ali suas aspirações políticas. A liderança marchou quase coesa com Fernando Collor na eleição de 1989. Um jovem televangelista adepto do bigodinho desgarrou-se do bloco: Silas Malafaia apoiou Leonel Brizola e depois Lula, escolhas que hoje vê como equivocadas.
Evangélicos triplicaram de tamanho na população, mas a esquerda ainda não aprendeu a falar a língua deles, diz o sociólogo Paul Freston, referência nos estudos sobre o pentecostalismo nacional. “A cada eleição, o crescimento evangélico é um problema crônico para o campo, pois representa uma porcentagem maior do eleitorado. A dificuldade de se conectar com esse segmento implica um preço cada vez maior. Não vai ser fatal nesta eleição, mas, na próxima, volta a ser um problema, como quase foi em 2014, como foi em 2018.”
“Se continuar com o muro, daqui a quatro anos levam outra invertida”, conjectura Paulo Marcelo, o pastor escanteado. “Nesta campanha, poderiam ter feito mais.”
Há uma farta dose de preconceito nesse debate. Evangélicos, aos olhos de muitos progressistas, são reduzidos a dois estratos: o dos pastores inescrupulosos e o do rebanho manipulado, despido de qualquer autonomia para decidir o que é melhor para si.
A presença da igreja em vácuos sociais deixados pelo Estado é vista com ceticismo. Que bom que o sujeito deixou de chegar bêbado em casa e bater na mulher depois de se converter, mas a que preço? Ele agora só fala de Jesus!
As reações antipáticas que Marina Silva, então senadora pelo PT, colheu após se converter, nos anos 1990, são uma amostra disso. Em sua biografia, ela conta que alguns colegas de partido foram os mais inclementes. Um disse que sempre pensou nela como uma mulher inteligente, não como uma evangélica.
“Toda vez que a esquerda mina alguém como Marina, cria um vazio que vai ser ocupado por uma Damares Alves”, diz Freston, trazendo para a mesa a ministra de Bolsonaro que clamou por um país “terrivelmente cristão”.
Por um momento, o fosso ideológico encolheu. Ao vencer em 2002, Lula conseguiu dissipar uma persistente má vontade de pastores com ele. Contou com Edir Macedo, Malafaia e companhia ao seu lado. Reelegeu-se com 6 de cada 10 votos evangélicos no segundo turno contra o então tucano Geraldo Alckmin, agora seu vice.
Muito provavelmente, o PT vai levar este pleito, mas o fará apesar dos evangélicos, diz Freston. Todas as pesquisas apontam que Bolsonaro tem uma vantagem polpuda de intenções de voto nesse grupo. E daqui a quatro anos, quando a fé protestante avançar ainda mais no Brasil? O que se tem feito para dissolver o messianismo criado em torno de Bolsonaro?
Como lembra o sociólogo, estamos diante de um autodeclarado católico com esposa e filhos evangélicos, que fez amizade com pastores e se deixou batizar em 2016 no rio Jordão pelas mãos de um pastor. Tudo isso fez dele “um candidato híbrido ideal, talvez o primeiro presidente pancristão, reunindo as vantagens eleitorais da identidade evangélica, mas evitando as desvantagens”.
O polo rival vai ficar parado assistindo? “Basicamente, a esquerda andou muito pouco nesses 30 anos na compreensão do mundo evangélico”, afirma Freston. “Fez muito pouco uso de pessoas que poderiam ajudar nesse sentido. Ela precisa de pessoas que tenham expressividade no meio. Falta entender as nuances, a diversidade eclesiástica, socioeconômica e política. O que precisa é de gente bilíngue.”
A batista Nilza Valéria Zacarias, uma das coordenadoras da canhota Frente Evangélica pelo Estado de Direito, sabe exatamente do que Freston está falando. Progressistas em geral têm dificuldade e desinteresse em traduzir a língua dos pentecostais, que são o grosso dos templos. São exemplos que soam até pitorescos, como falar em “rezar” quando evangélicos só oram —há diferença conceitual, já que a reza seria uma fórmula pronta, e a oração, um diálogo não roteirizado com Deus.
O PT precisa se atentar ao “processo acelerado de transição religiosa” pelo qual o país passa, diz Zacarias. Até os anos 1980, o Brasil era praticamente todo católico. Esse contingente caiu para a metade da população, enquanto evangélicos beiram o terço e são em sua maioria mulheres, negros e pobres.
Isso se reflete nas periferias, no camelô que se dirige à freguesa como varoa e abençoada, terminologias crentes. “As novas gerações não sabem tanto o que são as expressões católicas. Não vejo mais, na minha andança por comunidades, gente evocando santos [evangélicos não creem neles]”, afirma Zacarias. “No passado, bastava ver o céu carregado para a gente falar ‘minha Nossa Senhora’.” Agora, se popularizam ditos exportados por crentes, como “misericórdia” e “está amarrado”.
Sem entender o interlocutor, fica difícil estabelecer algum elo. Evangélicos têm um senso de comunidade forte e hábitos religiosos mais frequentes que a média católica, coalhada de não praticantes. Sua tendência a agir como bloco eleitoral é, portanto, mais alta.
Bolsonaro foi hábil como nenhum outro presidenciável em captar esse zeitgeist religioso. Lula pode ter sido o presidente que sancionou a Lei Nacional da Marcha para Jesus, mas nunca se deu ao trabalho de ir a uma.
O atual chefe do Executivo foi o primeiro inquilino do Palácio do Planalto a aceitar o convite para o evento mais importante no calendário pentecostal do país. Também desonerou obrigações fiscais de igrejas e nomeou pastores para a Esplanada e o STF. O Planalto, antes “consagrado a demônios”, como chicoteou a primeira-dama no púlpito de um pastor amigo, agora é do Senhor Jesus.
Por um breve período, Lula já foi ultrarreligioso. De luto pela morte da primeira esposa e do filho que ela carregava no ventre, deixou-se atrair para um movimento católico popular nos anos 1970, os Cursilhos da Cristandade. “Eu me sentia tão borocoxô que agarrei aquela novidade para sobreviver em paz”, recordou na sua biografia assinada por Fernando Morais.
Morais conta que Frei Chico percebeu que “aquilo estava ganhando ares de fundamentalismo religioso” e chamou o irmão de canto. “Lula, isso está virando fanatismo, rapaz. Você acorda rezando, passa o dia agradecendo a Deus. Eu entro em casa, vejo você ajoelhado na beira da cama. Volto pra casa, tá lá você, de joelhos. Parece que você tem que agradecer a Deus até a cada peido que solta!”
Depois, a religião só permeou sua trajetória pelas frestas. A mágoa com os pastores que lhe deram as costas depois de seu governo não foi pequena. Já a participação de evangélicos na política só fez crescer.
Parte dos dias de cárcere em Curitiba, o ex-presidente passou assistindo a cultos. Em novembro de 2021, já na toada eleitoral, disse o seguinte: “A religião pode ser feita com muita verdade, e ninguém precisa utilizar da boa-fé dos outros, porque a fé é uma coisa sagrada”.
Para Zacarias, Lula poderia usar 2022 para reagir mais enfaticamente às investidas bolsonaristas nas casas de Deus, mas mal saiu do lugar. Fez acenos tímidos à comunidade evangélica e pareceu se contentar com um único encontro com lideranças, em São Gonçalo (RJ), dois dias após Bolsonaro discursar sobre “um governo que acredita em Deus” no 7 de Setembro carioca, em um trio pago pelo amigo Malafaia.
Dizer que o petista pregou para convertidos não é só força de expressão. “Evangélicos progressistas somos minoria. Não precisamos do Lula falando para a gente, precisamos dele falando para a imensidão da igreja que está nos rincões.”
O ato foi organizado pelo Núcleo de Evangélicos do PT, sob comando de um bissexto quadro evangélico de peso no partido. A octogenária deputada Benedita da Silva se converteu aos 26 anos, em um momento penoso para ela: o marido desempregado, o irmão muito machucado após um acidente. Deu ouvidos àquele pessoal que chegou no hospital com a Bíblia embaixo do braço, e a vida mudou para melhor.
Benedita diz que o PT “é um partido plural que acolhe lutas a favor da expansão dos direitos das pessoas, independentemente de que isso seja chamado de ‘pauta identitária’”. Nem por isso, pondera, “pode ser definido, como a direita faz parecer, como o partido que quer mudar os costumes sociais, isso é absurdo”.
Ideias como a de que a sigla quer descriminalizar o aborto são balela, segundo a deputada. “Há documentos de grupos defendendo essa pauta, mas isso nunca entrou em nenhum plano de governo em eleição nenhuma. Também nunca entrou em votação durante governos do PT. O que acontece é que algumas mentiras perduram e há também pastores mal-intencionados que as mantêm circulando.”
Zacarias concorda, mas diz que esse recado não chega aos templos também por falha interna. A linha de frente evangélica que a campanha de Lula conseguiu reunir nem sempre tem capilaridade no segmento.
Muitas vezes, o que se vê é o progressista evangélico que desistiu da igreja por não se sentir à vontade nela. “Ele tem a memória afetiva, mas não é mais o cara que está toda semana na igreja. O que a esquerda tem que fazer para não se desconectar desse novo Brasil?”
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