Lula quer "enterrar" reforma administrativa proposta por Bolsonaro – Gazeta do Povo

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Duas das reformas estruturantes mais esperadas pelo mercado e que já estão no Congresso devem ter caminhos diferentes no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). A primeira, a tributária, foi elencada como prioritária pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad. A reforma administrativa do Estado, por sua vez, deve ser “enterrada”.
O deputado Rogério Correia (PT-MG), que coordenou a área técnica do trabalho na equipe de transição, sugeriu que a reforma administrativa da PEC 32/2020 seja arquivada.
O relatório final do gabinete de transição de Lula afirma que a reforma administrativa do governo Bolsonaro tinha “más intenções”, ecoando avaliações que PT e esquerda fizeram nos últimos anos a respeito da ideia de rever as regras do serviço público.
“[No governo Bolsonaro] a gestão pública permaneceu à deriva, distante de uma concepção de Estado republicano, democrático e desenvolvimentista. Ao contrário, essa agenda foi fortemente dominada pelas más intenções da PEC 32/2020, que mais atrapalharam que ajudaram a identificar os verdadeiros problemas estruturais do setor público brasileiro, a saber: o autoritarismo, o burocratismo, o privatismo, o fiscalismo e o corporativismo”, diz um trecho do relatório da transição.
A PEC 32/2020 foi enviada à Câmara dos Deputados em setembro de 2020 e aprovada um ano depois por uma comissão especial. Deveria ser votada em plenário na sequência, mas não avançou por falta de esforço do governo Bolsonaro, conforme o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). O ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que o “entorno do presidente bloqueou” o avanço da reforma.
Entre as propostas da reforma administrativa que desagradam os servidores estão:
Tais medidas não prosperariam no Congresso em pleno ano eleitoral, segundo sentenciou o deputado Ricardo Barros (PP-PR), líder do governo Bolsonaro na Câmara, no fim de 2021.
A discussão da reforma administrativa quase não ganhou holofotes durante a campanha presidencial. Lula pouco a citou em seu plano de governo e em sabatinas. De modo geral, o PT e toda a esquerda se opunham a regras mais rígidas para o serviço público.
O presidente eleito reconhecia que era preciso rever as carreiras de Estado, mas não ia muito além. Falava genericamente, defendendo “dar mais transparência aos processos decisórios, no trato da coisa pública de modo geral, direcionando a esfera pública e a ação governamental para as entregas públicas que realizem os direitos constitucionais”.
Para Mário Sérgio Lepre, professor e mestre em Ciência Política pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), qualquer reforma administrativa terá muita dificuldade em avançar em um Congresso muito sensível a pressões corporativistas.
“Isso mexe em uma série de coisas que vão gerar um ambiente corporativista que impede o debate, porque o próprio deputado está inserido nisso. [O funcionalismo] é um setor extremamente delicado e que vai utilizar toda a sua força política. Imagina fazendo greves para todos os lados. Eles têm um instrumento de pressão muito forte”, diz Lepre.

O cientista político comenta que os próprios estudos para se fazer uma reforma administrativa passam por servidores que são concursados e têm estabilidade de emprego, e que vão depender de outros servidores igualmente na mesma situação: “São poucos deputados que votariam tranquilamente”.
O deputado Rogério Correia afirmou que Lula deve negociar com Lira para o projeto não avançar. Para ele, é preciso rediscutir o serviço público no país com os próprios servidores antes de elaborar uma nova reforma.
Em entrevista à Gazeta do Povo, Correia defendeu a substituição da PEC 32/2020 por “uma mesa de diálogo com os servidores públicos, governo e sociedade em geral para discutir o funcionamento do serviço público no Brasil pós-pandemia e pós-governo Bolsonaro”.
Segundo ele, o pente-fino feito pelo grupo de transição constatou “grande defasagem” de servidores que se aposentaram e não foram repostos em áreas como educação, saúde, meio ambiente e outras. Para o deputado, a reforma administrativa do governo Bolsonaro ia na contramão da necessidade do Estado, ao buscar enxugar o serviço público, permitindo o acúmulo de funções e a redução da jornada de trabalho.
Outro dispositivo criticado pelo petista permitia a celebração de convênios com a iniciativa privada para diversos serviços públicos, e não apenas para ações e programas específicos que hoje já são realizados por organizações da sociedade civil de interesse público (OSCIPs) e organizações sociais (OSs).
“O cerne dela é a privatização dos serviços públicos. No final das contas, essa PEC vai definhando o serviço público e substituindo pela iniciativa privada. Por isso a necessidade de retirá-la da tramitação. Mas isso não significa que a gente não tenha que discutir mais eficiência, como melhorar [os serviços prestados], quais são os parâmetros, direitos e deveres dos servidores, tudo entra nos debates que temos que fazer”, disse o deputado.
Um dos pontos mais criticados, mesmo por defensores da reforma administrativa, foi que as regras propostas pelo governo Bolsonaro não mexiam com os poderes Judiciário e Legislativo, onde estão alguns dos servidores mais bem-remunerados do Estado.
Essa lacuna foi usada pela esquerda como pretexto para obstruir as discussões. “Os principais argumentos do governo de garantir bons serviços à população e reduzir privilégios parecem contraditórios à medida que o texto da PEC deixou de fora de algumas carreiras, como militares, juízes e Ministério Público, além de cargos políticos, os quais também não serão afetados pelas medidas propostas”, disse a deputada federal Alice Portugal (PCdoB-BA) em voto conjunto com parlamentares do PT e do PSB.
A deputada observou que algumas dessas carreiras recebem benefícios que não são afetados pelo teto constitucional. Uma outra proposta no Congresso busca atacar exatamente esse ponto: o projeto de lei 6.726/2016, que normatiza as regras para o pagamento de adicionais aos salários de servidores públicos (como gratificações e auxílios).
O relator do projeto, deputado federal Rubens Bueno (Cidadania-PR), afirma que a economia aos cofres públicos poderia chegar a R$ 3 bilhões. Segundo ele, a tramitação travou no Senado por pressão de magistrados e procuradores.
Em uma audiência pública, representantes de associações que integram a Frente Associativa da Magistratura e do Ministério Público (Frentas) disseram que o projeto conteria “riscos à democracia e à independência funcional das categorias”.
No texto apresentado por Paulo Guedes para justificar a reforma administrativa, o tema da estabilidade foi um dos que mais gerou controvérsia, por condicioná-la à avaliação de desempenho e tempo de trabalho, além de estabelecer novos vínculos jurídicos com o Estado.
Segundo o ministro da Economia, o ingresso no serviço público continuaria sendo por concurso, mas com diferentes regimes de contratação:
“De qualquer forma, é importante destacar que nem os atuais servidores ocupantes de cargo efetivo nem aqueles que vierem a ser admitidos no novo serviço público poderão ser desligados pelo arbítrio de uma pessoa ou em virtude de motivação político-partidária”, disse Guedes na justificativa.
A PEC 32/2020 também propõe a suspensão de férias por períodos maiores de 30 dias por ano, veda aumento de remuneração ou de parcelas indenizatórias com efeitos retroativos e também a aposentadoria compulsória como modalidade de punição.
A reforma passa a permitir a acumulação de cargos, “aproximando a realidade do setor público à do setor privado”. “Propõe-se a inversão da lógica: a acumulação será, em regra, permitida desde que haja compatibilidade de horário e não implique conflito de interesse”, afirma a justificativa da PEC.
As medidas, entre outras, seriam regulamentadas posteriormente por leis específicas. Após a apresentação, a PEC recebeu mais 75 emendas dos deputados, entre elas a garantia da estabilidade aos servidores contratados antes da aprovação; a que cria um regime jurídico “peculiar” específico para policiais civis da União, Distrito Federal, estados e municípios; a que disciplina o acúmulo de cargos, entre outras.
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