Minas comprou parte do nosso litoral, mas a Bahia nunca entregou. E nem vai – Jornal Correio

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A primeira palavra de ‘Grande Sertão: Veredas’ é bem conhecida: “Nonada”. Já o vocábulo que encerra o romance do mineiro João Guimarães Rosa poucos dão conta – a maioria dos leitores não deve ter ido até o fim do trajeto. O cantor Milton Nascimento, conterrâneo do escritor, foi lá e ainda usou para batizar a primeira e mais importante canção da parceria com Fernando Brant: “Travessia”. 
Em outubro passado (‘Outubro’, por sinal, é o nome da segunda canção feita pela dupla), Milton encerrou sua travessia nos palcos, após uma turnê de despedida que incluiu a Bahia. Era aqui também a estação final da ferrovia citada em ‘Ponta de Areia’, música dos próprios Bituca e Brant inspirada numa versão que eles tomavam como verdadeira: tanto as margens da linha férrea que cortava o sul da Bahia quanto uma faixa de praia ao cabo dela, em Caravelas, eram territórios mineiros.

Senta que lá vem
A história do mar de Minas (na Bahia) começa ainda nos tempos do imperador: em 1881, ou seja, duas copas antes de Dom Pedro II ser expulso do trono, com a Proclamação da República, foi aberto o caminho para que a Companhia de Estrada de Ferro Bahia-Minas (Baiminas) passasse. A ferrovia ligaria Ponta de Areia, localidade de Caravelas, a Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, uma das veredas do grande sertão mineiro.
Para incentivar a iniciativa privada a construir a bisavó da FIOL, Pedro II concedeu à Baiminas 6 km de terras devolutas (áreas públicas sem destinação pelo governo) em cada uma das margens dos trilhos. A faixa de terra de 12 km de largura se estendia por 142 km de extensão, acompanhando o leito da linha férrea, nas Gerais, até o litoral, com igual largura no final.

Minas Gerais reivindicou saída para o mar pelo distrito de Ponta de Areia, em Caravelas, no sul da Bahia (Foto: Pref. de Caravelas)
Mas aí o tempo passou, o imperador se picou, a Baiminas foi caindo pelas tabelas e ficou em extrema dificuldade financeira. Para tentar sair do buraco, hipotecou (deu como garantia) as terras concedidas ao Banco de Crédito Real do Brasil, em troca de um empréstimo para tentar segurar as pontas. A medida não adiantou muita coisa e, em 1908, o banco executou a dívida, ou seja, tomou posse das terras para quitação do débito. 
Porém, dois anos depois, foi a vez do próprio banco ficar na pindaíba e entrar em liquidação forçada. Nesse momento, o governo de Minas adquiriu as terras, em escritura de cessão de crédito e transferência de direito, com pagamento feito por meio de títulos da dívida pública, como explica reportagem dos colegas Paulo Henrique Lobato e Beto Novaes, do jornal Estado de Minas, publicada em 2015.
A grana investida foi em torno de 300 contos de réis (cerca de R$ 40 milhões em valores atualizados), mas o mar nunca entrou no mapa das Minas.
Approach de Brant 
Essa história ficou praticamente esquecida até maio de 1973, quando o então jornalista Fernando Brant – olha ele aí de novo – publicou uma reportagem sobre o “litoral mineiro” na popularíssima revista O Cruzeiro.
Na matéria, intitulada “Olha aí o mar de Minas”, Brant falava do trecho que começa na divisa dos municípios de Serra dos Aimorés (MG) e Mucuri (BA), e vai bater no Atlântico, incluindo parte da cidade histórica de Caravelas e seus dois distritos, Ponta de Areia e Barra de Caravelas.
Brant lembrava que o causo ficou décadas engavetado até que, em 1948, o então advogado-geral de Minas, Darcy Bessone, alertou o governador da época, Milton Campos, sobre o tal do mar não reclamado. O secretário de Finanças local, Magalhães Pinto, também reforçou a lembrança escrevendo ao chefe:
“Senhor governador, tenho a honra de submeter à elevada consideração de Vossa Excelência o presente processo relativo ao domínio do estado sobre terras marginais da estrada de ferro Bahia-Minas, no qual se encontra cópia do parecer emitido pelo doutor advogado-geral do estado, pedindo a Vossa Excelência deliberar sobre a orientação que se deva imprimir ao caso”.
Campos então mandou o adv-geral encaminhar um expediente ao Governo da Bahia, ordem cumprida em 1949 com uma cartinha no estilo ‘e aí, bença?’ “Tenho a honra de submeter à elevada consideração de Vossa Excelência os inclusos documentos relativos a terras marginais da Bahia-Minas, de propriedade deste estado [Minas]. (…) Como vê Vossa Excelência, exclui-se do domínio desse estado [Bahia], ao qual não se contesta, todavia, o poder jurisdicional resultante dos limites que o separam do território mineiro”. 
O governador Otávio Mangabeira olhou aquilo, considerou um absurdo sem precedentes e não se deu ao trabalho de responder.
Depois da reportagem, foi a vez de Brant reclamar o terreno na música com Milton, da qual é o letrista: “Ponta de areia, ponto final, da Bahia a Minas, estrada natural, que ligava Minas, ao porto, ao mar, caminho de ferro mandaram arrancar”, destaca o trecho inicial, cheio de sentimento ou mimimi, como preferir.

Forma da lei
A advogada baiana Losangela Passos, especialista em Direito Público e Direito Civil, destaca que é um caso complicado de se entender pois “perpassa vários ramos do direito, atrelados à história”. “Mas analisando sem adentrar nas matrizes históricas, nem na legislação específica da época, é clarividente a distinção de propriedade como faculdade / direito / poder sobre um bem e a soberania e suas subdivisões administrativas e políticas sobre o território”, comenta a sócia do Escritório Passos Sacramento, em Salvador.
“O fato de uma pessoa jurídica pública [Minas Gerais] ser, ‘supostamente’, proprietária de um imóvel, não significa que detém o poder sobre o âmbito territorial espacial. Exemplificando, grosseiramente: João é proprietário de um terreno em Porto Seguro, mas a área territorial, geopolítica, continua pertencente aquele município, estado, não se transfere para João, que tem o seu direito de propriedade, limitado a usar, gozar e fruir do bem”, elucida, citando um terreno que não tenho (ainda).
Também conforme a especialista, mesmo que se considerasse válida a “compra” necessariamente, isso não significaria que a área havia sido incorporada ao território mineiro. “A aquisição seria como outro imóvel qualquer, exercendo sobre ele apenas o direito de propriedade”.
Losangela Passos destaca que o artigo 26 da Constituição Federal estabelece quais são os bens dos estados, prevendo as áreas, nas ilhas oceânicas e costeiras, que estiverem no seu domínio, “logo, a área em discussão pertence ao estado da Bahia”, conclui ela, dando as palavras finais sobre o assunto: a travessia de Minas para o mar, infelizmente, não passa por aqui.
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