Moda sem política é só tecido: por que é impossível dissociar uma coisa da outra? – Glamour Brasil

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Por Rafaela Fleur (@rafaelafleur)
03/10/2022 21h49 Atualizado 04/10/2022
Após quatro temporadas de apresentações longe das passarelas físicas, o designer belga Dries Van Noten, desfilou sua nova coleção ao vivo na semana de moda de Paris. Para ele, ressurgir nas passarelas foi como florescer após um duro inverno de escassez. Poético e metafórico, sim — porém, longe de ser desconectado da realidade. Em diversas entrevistas, Dries comentou sobre a influência de contextos sociopolíticos no seu processo criativo. Engana-se quem acredita que este caso é uma exceção. Na verdade, é até pleonasmo falar em uma "moda política". Por essência, os dois universos nunca estiveram dissociados. Para quem acredita ser possível amar um e ignorar o outro, vai uma máxima histórica – e quase universal – entre os profissionais que se prezam: moda sem política é só tecido.
Apesar dos vários exemplos na moda internacional, como a Balenciaga apresentando coleções em cenários pós-apocalípticos em tempos de guerra, e a Bottega Veneta questionando o valor do consumo e as tendências vorazes, em um momento como este, bom mesmo é olhar para dentro de casa. Nisso, a moda brasileira tem muito a nos ensinar.
Em 2021, no Dia da Consciência Negra (20 de novembro), a etiqueta paulistana Mile Lab apresentou um desfile-manifesto na 52ª edição do São Paulo Fashion Week (SPFW). A marca comandada pela estilista Milena Nascimento verbalizou duras críticas ao evento, denunciou falta de apoio, questionou a efetividade “da tal cota de diversidade” e dividiu com o público uma série de incômodos que, até então, estavam restritos aos bastidores. Nos 26 anos de SPFW, nunca havia acontecido nada parecido.
O desfile da Mile Lab, do projeto Sankofa, foi o mais emocionante da edição (Foto: Divulgação/SPFW) — Foto: Glamour
Outros grandes nomes da moda nacional, como LED, Isaac Silva, Walério Araújo e Misci têm um histórico sólido de desfiles políticos. Entre as pautas, representatividade LGBTQIAPN+, protagonismo preto e defesa da democracia. Destaque também para a estilista Naya Violeta, que trouxe Sônia Guajajara, a primeira deputada federal indígena eleita por São Paulo, na última edição do evento, em junho deste ano.
Em todos os desfiles citados, um ponto em comum: o incômodo de parte da bolha fashionista privilegiada, sentada na primeira fila. Dezenas de influenciadoras (com looks bem semelhantes) aplaudiam timidamente, com olhos entediados. Nos stories e reviews, muitos comentários sobre tecidos e silhuetas. Sobre pluralidade e exaltação às minorias, silêncio total.
Bianca DellaFancy, para Walério Araújo (Foto: Rafaela Fleur) — Foto: Glamour
LED – São Paulo Fashion Week — Foto: @anthonyarjph
Vale lembrar que boa parte das grandes maisons que essa mesma bolha admira foram construídas com autenticidade e provocação. Elsa Schiaparelli foi enviada para um convento pela sua família conservadora, após escrever um livro com poesias eróticas. Guccio Gucci era um homem de origem pobre. Coco Chanel foi duramente criticada ao usar calça jeans – essa, aliás, era proibida para mulheres até 2013 na França, quando a lei foi revogada.
Achar que moda é só tendência, desfile e foto no Instagram, é reflexo de uma triste ausência de pesquisa, senso crítico e consciência social. Não por acaso, em tempos de eleição, a postura indiferente de boa parte dos profissionais da indústria é tão incômoda.
Os quatro anos invernais de Dries Van Noten puderam ser sentidos coletivamente. No Brasil, a lista de tragédias é extensa: mortes, escândalos, polarizações, retorno do país ao mapa da fome. Tomar café da manhã ficou 26,15% mais caro nos últimos 12 meses. 13,2 milhões de brasileiros estão desempregados. Mais de 700 mil pessoas morreram na pandemia. Diante de um país tão abalado, patriota mesmo é quem se compromete. Quem sabe que influência tem a ver com posicionamento. Não existe moda sem coragem.

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