Na posse de Lula, mostra resgata obra tirada do Planalto por Bolsonaro – UOL
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‘Orixás’, de Djanira, na mostra ‘Brasil Futuro’, em Brasília Jean Peixoto/Divulgação
Quem costurou a bandeira nacional foi um grupo de mulheres, todas brancas, espalhadas numa sala atravessada por um grande mastro. É o que faz crer a pintura “Pátria”, de 1919, de Pedro Bruno.
O jovem artista Elian Almeida rompeu com esse clima falso do nascimento do país retratado no começo do século passado. “O Mais Importante É Inventar o Brasil que Nós Queremos” mostra uma bandeira que é costurada por mulheres negras, que vestem branco e estão próximas umas às outras. Sai o esplendor e fica a pincelada marcada, a cor que vibra.
A obra de Almeida é uma das que organiza a ideia de reconstrução de um país com uma cultura desmontada, mote de “Brasil Futuro: As Formas da Democracia”, exposição que entra agora em cartaz no Museu Nacional da República, em Brasília.
Ela é parte da programação cultural da posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, que terá ainda uma série de shows no dia 1º de janeiro com nomes como Pabllo Vittar, Margareth Menezes, BaianaSystem, entre outros.
“Tudo na posse é efêmero”, afirma Lilia Schwarcz, que organiza a mostra com o arquiteto Rogério Carvalho, ex-curador dos acervos dos palácios do Planalto e da Alvorada, o secretário de cultura do PT, Márcio Tavares, e o ator Paulo Vieira. Levantar uma exposição com mais de 50 artistas e quase 200 obras, para ela, era uma maneira de tornar esse rito mais permanente e documentado.
É também uma tentativa de registrar a produção de artistas que foram prejudicados pelo rebaixamento do Ministério da Cultura, pela falta de verba do governo federal para a pasta e pelas tentativas de censura nos últimos quatro anos, diz Schwarcz.
Afinal, o período do governo de Jair Bolsonaro foi também acompanhado por uma ascensão de grupos que questionaram trabalhos envolvendo nudez e sexualidade, como os episódios do “Queermuseu”, mostra censurada em Porto Alegre, e da performance “La Bête”, com um homem nu, no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Fazer esse retrato com acervos da capital do país, plano inicial da equipe, se mostrou inviável. “Constatamos que seria uma exposição muito branca e datada e que precisávamos recorrer a artistas mais contemporâneos, sobretudo negros, negras, indígenas e LGBT”, conta a historiadora.
“Brasil Futuro” está em sintonia com museus e galerias que têm se dedicado a expor uma nova geração de artistas, formada principalmente por pintores, e ecoa em alguma medida as premissas trabalhadas em “Histórias Brasileiras”, a maior exposição do ano no Masp.
As máscaras de barro de Maria Lira Marques, as esculturas geométricas e de corte preciso de Conceição dos Bugres, as cosmogonias distintas dos artistas indígenas Denilson Baniwa, Gustavo Caboco, Jaider Esbell e Daiara Tukano e os fuzis montados com câmeras analógicas de Allan Weber são desdobramentos de uma ideia de democracia como um projeto inconcluso, sempre inacabado.
“Esse é o cerne e a beleza da democracia, porque sempre existem novos direitos na agenda”, afirma Schwarcz. “Com isso, a exposição se abre para o tema fundamental da sociedade brasileira, a desigualdade, a diversidade e a ampliação dos direitos.” Essa sempre foi uma disputa conflituosa —e constantemente travada no campo das artes visuais.
Artistas como Elian Almeida relembram o público disso ao desestabilizar imagens já consagradas no imaginário brasileiro. É também o caso de Daniel Lannes, que fez releituras de trabalhos clássicos como os “Bandeirantes”, de Henrique Bernardelli. Nas telas do carioca, monarcas se tornam vultos e a história perde seus contornos claros.
Bolsonaro andou na contramão desse tensionamento da história oficial. No Sete de setembro deste ano, a figura do imperador voltou a aparecer nas notícias com a chegada do coração de dom Pedro como parte das comemorações dos 200 anos da data promovidas pelo governo.
Segundo Schwarcz, que também escreveu um livro sobre o assunto, é como se ele ensejasse a obra “Independência ou Morte!“, de Pedro Américo, e se tornasse o homem que veio trazer a independência do país. “É um modelo de histórico principesco, autoritário e sem atuação da sociedade civil.”
Essa construção imagética, claro, também tomou conta do Palácio do Planalto. A maioria das novas obras que habitaram espaço, e foram retiradas aos poucos nas últimas semanas pelo presidente e por sua mulher, são elogiosas da própria figura presidencial.
“São basicamente retratos de Jair Bolsonaro e de sua família”, avalia a curadora. “Não é uma coincidência histórica que governos totalitários usaram e abusaram desse tipo de arte a serviço de um Estado, de uma religião, de uma pessoa e de uma liderança.”
Bolsonaro é a figura central dos retratos que passaram a ocupar o Alvorada. Num deles, ele aparece numa proporção maior que sua mulher. Há também mal acabamento e falta de técnica nas obras levadas aos prédios oficiais do governo que chamaram a atenção nos últimos quatro anos.
Rogério Carvalho, que vai voltar à curadoria de acervo do Planalto, conta que a equipe tentava retratar o Brasil e mobilizar símbolos em que a própria população se reconhecesse ao trabalhar com o acervo. Para ele, desde que Michel Temer chegou ao Alvorada, tudo que foi pensado para ser público voltou a ser privado.
“Primeiro, a visitação foi restrita e extinta”, diz ele. “E aquilo que já estava consolidado há anos num espaço público voltou a servir ao olho de poucos escolhidos. O que era importante no palácio voltou aos gabinetes, o oposto do que a gente tinha proposto na restauração do acervo.”
A pintura “Orixás”, de Djanira, chegou a ser retirada do Salão Nobre do Palácio do Planalto durante o governo Bolsonaro. A obra dos anos 1960, que mostra divindades de religiões de matriz africana, foi colocado na reserva técnica do acervo e saiu da exposição pública. Agora, a pintura volta a ser exibida na exposição no Museu Nacional.
“Não existe memória, não existe história, não existe uma relação entre a arte produzida por Djanira ou Di Cavalcanti, por exemplo”, afirma Carvalho, sobre o trabalho feito com o acervo do governo nos últimos anos.
Além do intencional apelo a uma retomada mais explícita do que Bolsonaro tentou apagar, Djanira também representa um embaralhamento temporal de artistas contemporâneos jovens com nomes já consagrados.
Nessa ideia alargada de democracia, a organização mobiliza Nelson Leirner e seus comentários ácidos, pop e eróticos feitos em plena ditadura militar, os conhecidos autorretratos de “Procuro-me”, de Lenora de Barros, artista que também esteve na última edição da Bienal de Veneza, e a coluna de azulejos verdes e amarelos com carne exposta de Adriana Varejão.
Uma fotografia de Mauro Restiffe também evoca uma Brasília que vibrava com a primeira posse de Lula. A Esplanada dos Ministérios tomadas por bandeiras vermelhas antes dos abalos da Lava Jato, do impeachment de Dilma e da ascensão de Jair Bolsonaro lembram que o país não é o mesmo de duas décadas atrás. O clima, no entanto, é de que as feridas do país servem para profanar as histórias do poder.
“O que pretendemos agora, num primeiro momento, é um resgate do que era um avanço”, conta Carvalho, sobre o futuro trabalho com o acervo oficial. “E também conversamos para pensar em algo que pudesse também atualizar o acervo presidencial.”
“Todo museu que se preze no Brasil tem que fazer uma política de acervo efetiva”, diz Lilia Schwarcz. “Algo que inclua o que foi escolhido durante tanto tempo.”
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