Narrativa da anticorrupção como movimento partidário se firmou, diz professor de Harvard – JOTA

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entrevista
Matthew Stephenson analisa as eleições no Brasil e as perspectivas para a política anticorrupção no país
Nenhum outro professor estadunidense de Direito acompanhou tão atentamente a Operação Lava Jato e seus desdobramentos políticos como Matthew Stephenson. Formado em Direito e Ph.D em ciência política pela Universidade Harvard, Stephenson leciona desde 2005 na Faculdade de Direito da mesma instituição. Em diversas oportunidades recentes, esteve no Brasil para ministrar palestras ou cursos sobre Direito Administrativo e Direito Anticorrupção, que são suas principais áreas de especialização.
Em 2018, tornaram-se célebres no país um texto de sua autoria publicado na Folha de S.Paulo discutindo o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, bem como alguns posts acerca do mesmo tema em seu blog sobre anticorrupção. Desde então, seus escritos já foram citados tanto por críticos da Lava Jato, como por seus apoiadores, inclusive pelos personagens diretamente envolvidos na operação.
Na tarde do último dia 20 de outubro, o professor Matthew Stephenson recebeu o entrevistador em seu escritório, em um dos edifícios da Faculdade de Direito de Harvard, para conversar sobre o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, bem como sobre as perspectivas da política anticorrupção no país.
*
Em 2018, durante o segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, você publicou um artigo na Folha de S.Paulo sustentando que, a despeito dos malfeitos cometidos pela gestão do PT, a experiência histórica de outros países sugeria que a eleição de Jair Bolsonaro poderia ser ainda pior, no longo prazo, para o combate à corrupção no Brasil. Quatro anos depois, você acredita que as suas previsões se tornaram realidade?
Sim, infelizmente. Minhas preocupações sobre a eleição de Bolsonaro, manifestadas antes de ele se tornar presidente, tinham em parte a ver com preocupações sobre a sua ética individual e das pessoas próximas a ele, porém mais significativamente tinha a ver com o histórico de políticos daquele perfil em enfraquecer ou politizar instituições importantes, incluindo instituições da Justiça. Eu sempre gosto de enfatizar nesse tipo de conversa que eu não sou brasileiro, não me considero um especialista em Brasil e não falo português, então minhas informações sobre o Brasil vêm principalmente de amigos brasileiros, colegas e fontes traduzidas para o inglês. No entanto, eu entendo que tem acontecido de o presidente Bolsonaro ignorar, enfraquecer ou politizar importantes instituições brasileiras, de forma que minou a habilidade delas de combater a corrupção eficazmente, ou mais genericamente de operar como órgãos independentes e efetivos do sistema brasileiro.
Quais são as suas expectativas em relação a um possível segundo mandato de Bolsonaro, caso ele vença as eleições?
Eu acho que seria muito, muito pior. Por algumas razões. A primeira é o meu entendimento de que, nas eleições para o Congresso, os apoiadores de Bolsonaro foram muito bem, melhor do que as pesquisas previam. Penso que com o Congresso majoritariamente do seu lado, há muito mais que ele possa fazer sem qualquer tipo de controle político externo. A segunda é que, se ele for bem-sucedido nesta eleição, não obstante os danos que já causou às instituições brasileiras, ele se sentirá encorajado a ir mais longe para assegurar que não haja controle efetivo sobre a sua autoridade. Então, eu ficaria muito preocupado de que, por pior que tenha sido o primeiro mandato do Bolsonaro, o segundo seria substancialmente pior.
As gestões do PT fortaleceram alguns órgãos anticorrupção, como a Polícia Federal e a Controladoria-Geral da União. Lula e Dilma sempre nomearam como procurador-geral da República aquele que fosse o mais votado pelos seus pares (na lista tríplice organizada pela Associação Nacional dos Procuradores da República). Posteriormente, esse arcabouço anticorrupção fortalecido veio a punir políticos de alto escalão do próprio PT. Agora, mesmo em campanha, embora afirme que continuará a aprimorar os mecanismos anticorrupção, Lula se recusa a assumir um compromisso público de que continuaria a nomear futuros procuradores-gerais da mesma forma. O que esperar de uma possível nova administração do Lula no campo anticorrupção?
Eu estou muito pessimista. Meu entendimento é o de que, a despeito de todas as falhas éticas e escândalos de corrupção das primeiras gestões do PT — sob Lula e Dilma — eles não apenas não fizeram o que Bolsonaro fez no que tange a enfraquecer e politizar as instituições brasileiras de Justiça e de integridade, como também as fortaleceram em vários sentidos. Então, alguém mais otimista poderia dizer que talvez isso venha a acontecer de novo. Talvez Lula seja um político de máquina, talvez ele tolere ou até participe em alguma medida de algumas formas de patronagem — e algumas talvez até cruzem a linha da corrupção —, mas ele pelo menos não irá erodir as intuições brasileiras e pode fortalecê-las.
Há razões, no entanto, para ser mais pessimista. Uma, por óbvio, é a sua experiência pessoal — tendo sido alvo de uma investigação anticorrupção —, e o aparecimento de uma narrativa de que a Lava Jato foi essencialmente uma ferramenta política para perseguir a esquerda política brasileira em geral e Lula em particular. Eu não penso que isso tenha sido verdade, mas essa narrativa emergiu e solidificou-se, o que é muito lamentável. Porque, em seu ápice, uma das promessas que a Lava Jato suscitou foi a de um compromisso não partidário ou suprapartidário, ao menos entre a população brasileira, de fazer do combate à corrupção e da promoção da integridade uma questão central. Todavia, eu sinto que essa ideia se erodiu e agora a retórica e o discurso anticorrupção restou associado com a direita do espectro político, sendo que a esquerda assumiu uma espécie de discurso “anti-anticorrupção”.
Outra razão para estar preocupado é uma sobre a qual eu não tenho conhecimento direto, mas, em conversas reservadas com alguns colegas, amigos e profissionais brasileiros nessa área, pareceu-me que as pessoas ao redor do Lula e que o aconselharam durante os seus primeiros mandatos presidenciais em assuntos relacionados a reformas legislativas não foram necessariamente os militantes tradicionais do PT. Foram pessoas mais modernas, reformistas, idealistas e ligadas à ideia de boa governança. Todavia, meus amigos brasileiros suscitam preocupações de que as pessoas ao redor do Lula agora, que lhe estão aconselhando nesse momento sobre assuntos jurídicos, tendem a ser advogados de defesa que o ajudaram a lutar contra as acusações de corrupção e que podem ter visões fortes sobre como dificultar que procuradores e promotores promovam a persecução a questões relacionadas à corrupção. Eu penso que é menos provável que esse novo grupo de pessoas esteja entusiasmado com a ideia de que haja órgãos de controle independentes e poderosos e em reformas ambiciosas que fortaleçam os órgãos de Justiça e os órgãos que promovem integridade.
Eu espero estar errado sobre tudo isso. Espero que uma eventual nova gestão do Lula pareça com a primeira gestão, ao menos no que concerne à disposição de fortalecer instituições e ao compromisso a uma abordagem não política ou não partidária a instituições de controle importantes. Mas há razões para preocupação.
Em 2020, você publicou um artigo, em coautoria com Jessie Bullock (atualmente Jessie Trudeau), refletindo sobre o futuro do combate à corrupção no Brasil após a Lava Jato. Recentemente, Sergio Moro e Deltan Dallagnol, os dois maiores expoentes da Lava Jato, declararam apoio a Bolsonaro no segundo turno. Moro até mesmo participou como assessor de Bolsonaro em debate na TV recentemente. Como você vê esse apoio? Em que medida esse apoio afeta a imagem da Lava Jato no exterior ou compromete o seu legado no Brasil?
Eu penso que é um desastre. Eu fiquei extremamente decepcionado em ver que Sergio Moro e Deltan Dallagnol optaram por publicamente apoiar Bolsonaro. Eu acho que vai danificar a imagem da Lava Jato no exterior. Penso também que vai alimentar a narrativa de que a Lava Jato realmente foi um movimento “antiesquerda” ou contra o Lula e que era politizada desde o começo. Eu penso que irá fornecer justificativa para aqueles que queiram dizer que o Ministério Público e talvez até o Judiciário precisam ser domados por causa de excessivo viés (político). Também acho que ficará mais difícil defender a operação e fazer o que eu gostaria que tivesse sido feito, que é estabelecer uma coalizão não partidária ou suprapartidária de pessoas que queiram promover integridade no governo brasileiro.
O que aconteceu na realidade foi exatamente o oposto do que esperávamos no nosso artigo “How should Lava Jato end?”, que você mencionou: a narrativa da anticorrupção como um movimento partidário no Brasil realmente se firmou.
Eu queria deixar algumas coisas claras, no entanto. Primeiro, pessoalmente eu não acredito que a Lava Jato fosse de fato um esforço de direita para derrubar o Lula ou o PT. Eu encontrei o Sergio Moro em algumas ocasiões, mas não sinto que eu tenha uma relação pessoal com ele. Eu conheço melhor o Deltan Dallagnol e sinto que tenho uma relação pessoal com ele. Já falei com ele muitas vezes, ele me convidou para palestrar no Brasil e já participamos de alguns eventos juntos. Penso que temos uma relação muito amistosa e cordial.
Porém, deixando de lado qualquer sentimento de amizade, estudando a Lava Jato como um estrangeiro e falando com muita gente sobre o tema, tanto dentro como fora do Brasil, eu não penso que desde o início fosse uma operação anti-Lula ou anti-PT. Penso que pessoas ao redor do espectro político foram pegas nas investigações e que havia suporte probatório às acusações ajuizadas. Sei que o Lula gosta de dizer na campanha que foi completamente absolvido, mas não é exatamente verdade. Houve decisões processuais de que os seus direitos como réu criminal foram violados… Enfim, eu só não acredito que a Lava Jato tenha sido apenas um esforço político de direita anti-PT e anti-Lula.
Segundo, eu posso entender o porquê especialmente de Deltan Dallagnol e também em alguma medida o porquê de Sergio Moro estarem profundamente amargurados e irritados com o que o Lula e ao PT fizeram com eles. No meu ver, houve um concertado, injustificado e repreensível esforço para destruir a reputação pessoal de Deltan Dallagnol e de outras pessoas que trabalharam na Operação Lava Jato, e de prejudicá-los até financeiramente. Para tentar defender a reputação dessa figura que é cultuada por uma base de apoio quase religiosa, o PT estava disposto a dizer qualquer coisa absurda. Então, se eu estivesse na posição do Deltan, também seria muito difícil para mim apoiar o Lula ou torcer pela sua vitória. Meu julgamento estaria muito enublado por uma raiva justificável contra essa campanha de destruição de reputação.
No entanto, eu penso que a decisão de Sergio Moro e Deltan Dallagnol de abertamente apoiar o Bolsonaro (aqui não me refiro ao voto que quisessem depositar privadamente nas urnas, mas à decisão de abertamente apoiar o Bolsonaro) foi um enorme erro e que vai retardar a causa que os dois defenderam (o Deltan especialmente) nos últimos anos. Eu acho que foi realmente um enorme revés para a Lava Jato, para o Brasil, para a reputação internacional da operação… Eu acho terrível. Continuo a acreditar que a operação não tinha uma agenda explícita de direita política, mas ficou muito mais difícil de defender essa posição. Vai ser muito mais difícil defender essa posição internacionalmente. Eu não acredito que o Deltan Dallagnol fosse um sujeito partidário, enviesado desde o início. No entanto, é mais difícil de argumentar isso de forma crível internacionalmente diante dos últimos eventos.
Eu penso que tanto o Moro, quanto o Dallagnol, cometeram um erro moral e político na decisão. Moral, porque o Bolsonaro não é apenas pior do que o Lula nas questões anticorrupção. Se Lula é terrível, Bolsonaro é pior. Bolsonaro também é uma ameaça à democracia brasileira e a compromissos básicos de tratar as pessoas com decência, bem como a direitos humanos fundamentais. Como eu disse em um post no meu blog antes do primeiro turno das eleições de 2018, “algumas coisas são mais importantes do que corrupção”. Ou seja, mesmo que você pensasse que o Bolsonaro fosse melhor do que o Lula na questão da corrupção — o que era plausível à época, eu penso ser totalmente implausível agora —, ainda assim algumas outras coisas são mais importantes. Então houve um erro moral.
Mas ainda que você discorde do que falei, é também um erro de estratégia política. Porque Dallagnol alcançou, em um dia, o que o Lula e os apoiadores do PT foram incapazes de alcançar em cinco anos: danificar, talvez de forma irreparável, a reputação da Lava Jato e dos procuradores que nela trabalharam, como enviesados politicamente. Porque a campanha do Lula e do PT para desacreditar a Lava Jato pode ter ganhado alguma tração no Brasil (eu não conheço tanto da opinião pública brasileira), porém, nos círculos internacionais, os especialistas mais convencionais que acompanharam o Brasil mais atentamente nunca acreditaram que a Lava Jato fosse apenas uma operação motivada politicamente, ainda que tenham acontecido erros aqui e acolá. Mas o apoio do Moro e do Dallagnol ao Bolsonaro agora prejudicou substancialmente a reputação internacional da operação e das pessoas a ela associadas.
Como eu disse antes, eu não acho que foi uma operação política desde o começo. Eu não sou um especialista em Brasil, mas sinto que acompanhei de perto o suficiente e penso que a adesão pelo Dallagnol e pelo Moro à política do Bolsonaro e da extrema direita aconteceu posteriormente e pode ter sido uma consequência do grau em que eles foram atacados injustamente. Se eu acho que minhas crenças serão compartilhadas pelos especialistas internacionais da comunidade anticorrupção? Eu receio que não. Foi como um gol contra, para usar a mesma metáfora que utilizei quando Sergio Moro aderiu ao governo Bolsonaro. Foi tão prejudicial e totalmente desnecessário. E eu estou muito desapontado.
Eu gostaria de falar um pouco dos Estados Unidos. Em 6 de janeiro de 2022, um grupo de apoiadores de Donald Trump, incitados pelo próprio então presidente, atacou o Congresso americano, pretendendo reverter o resultado das eleições. Bolsonaro tem repetidamente confrontado a Justiça Eleitoral e criticado as urnas eletrônicas utilizadas no Brasil. Com isso, alguns analistas políticos brasileiros temem que um episódio à semelhança do 6 de Janeiro americano possa ocorrer no Brasil, caso Bolsonaro perca as eleições. Que instituições ou elementos impediram que aquela insurreição tivesse maiores consequências para a democracia americana? Você acredita que essas mesmas instituições ou elementos também estão presentes no Brasil?
É uma pergunta muito difícil. Por que a insurreição não teve sucesso? Primeiro, pelo heroísmo da polícia do Capitólio, que garantiu que, apesar da destruição do edifício e da perda de algumas vidas humanas, nenhum membro do Congresso fosse ferido. Não conseguiram enforcar o vice-presidente Mike Pence (a despeito do que cantavam no dia), não conseguiram encontrar e machucar a presidente da Câmara, Nancy Pelosi. Segundo, a recusa de alguns membros do Partido Republicado de aderir à insurreição. Por exemplo, Mike Pence — que nem é um político que eu admire — recusou-se a participar de um cenário de golpe [Pela Constituição americana, o vice-presidente dos EUA também preside o Senado, sendo, nessa qualidade, o responsável por chefiar a contagem dos votos do Colégio Eleitoral nas eleições presidenciais]. Se ele tivesse aderido a esse esquema de não certificar as eleições, talvez uma situação diferente pudesse ter sido criada. Terceiro — e muito importante, porque é o que deixa meus amigos brasileiros nervosos —, nunca houve uma possibilidade significativa nos Estados Unidos de que forças militares pudessem intervir para se aliar ao Trump e seus apoiadores na insurreição. Nunca houve uma possibilidade séria de que os generais pudessem se juntar à insurreição.
Por fim, havia outra peça desse imbróglio, que era a estratégia jurídica. O esquema não se limitava apenas aos acontecimentos do dia 6 de janeiro em si. A estratégia era criar o caos como um pretexto para que o vice se recusasse a certificar os votos ou para que certos senadores começassem a duvidar dos resultados dos estados. Porém, mesmo antes dos eventos de 6 de janeiro, as Cortes americanas já vinham consistentemente rechaçando as demandas frívolas para retardar ou perturbar as eleições.
No Brasil, acho que a grande preocupação não é uma estratégica jurídica, mas sim a questão militar, já que Bolsonaro alega ser próximo dos militares. A discussão gira mais em torno de um golpe de Estado tradicional.
Para muitos críticos da Lava Jato, a ascensão de Bolsonaro à cadeira presidencial está ligada a sentimentos que foram despertados nos eleitores pela operação. Bolsonaro é um subproduto não intencional da Lava Jato? Como conduzir campanhas anticorrupção equilibrando a necessária severidade de medidas contra a corrupção política com a cautela para não desestabilizar o sistema político?
É uma grande pergunta. No sentido literal, sim, a eleição do Bolsonaro é uma consequência não intencional da Lava Jato. Bolsonaro foi capaz de capitalizar a retórica anticorrupção e os sentimentos anticorrupção, na medida em que a corrupção ficou muito associada com o governo do PT. Não que necessariamente fossem mais corruptos por natureza do que qualquer outro partido, mas porque era o partido no poder. Além disso, Lula — independentemente do que você pense dele — era alegadamente o único candidato que teria derrotado Bolsonaro nas eleições. Estando preso à época, não pôde concorrer.
No entanto, acho que seria um pouco injusto jogar tudo no colo da Lava Jato. Houve uma confluência de eventos que levaram à eleição de Bolsonaro. Por exemplo, se ele não tivesse sido esfaqueado por um louco — o que gerou muita simpatia a ele — talvez ele não vencesse. Talvez se Lula e o PT estivessem menos focados em concentrar o debate apenas em torno de Lula e mais em construir candidaturas viáveis, Bolsonaro não vencesse. Quero ser cauteloso aqui para que nenhum leitor interprete essa entrevista no sentido de que eu apoio a ideia de que a Lava Jato não valeu a pena, porque se não houvesse Lava Jato não haveria Bolsonaro. Não havia como razoavelmente prever antecipadamente todos os eventos que tiveram repercussão política para aquela eleição.
Essa discussão se relaciona a uma questão mais geral: em que medida procuradores, promotores, juízes etc., em casos relacionados à corrupção, devem se preocupar com questões como essa [as consequências políticas de seus atos]? Eu não sei a resposta. Acho que é uma resposta contingente às diferentes circunstâncias. Há duas possibilidades.
Uma primeira interpretação, no sentido de que os agentes públicos não devem se preocupar com política. Não devem tentar prever ou evitar as consequências políticas de longo prazo do que fazem ao sistema político. Primeiro, porque não é o seu trabalho. Segundo, porque não é provável que sejam particularmente bons nisso. Terceiro, porque provavelmente irá apenas distorcer as suas decisões e possivelmente levar a decisões autointeressadas, talvez subconscientemente autointeressadas. Realmente queremos que um promotor ou procurador (que foi um bom aluno de Direito, que talvez tenha até estudado fora, que tenha experiência em casos de colarinho branco…) tente fazer complexos cálculos políticos sobre se deve ou não ajuizar uma ação em face de um político de alto escalão — que obviamente tenha incorrido em atos de corrupção e sobre o qual haja provas — porque está preocupado com as ramificações políticas? Acho que há bons argumentos para pensar que não é como eles deveriam agir.
Uma segunda interpretação seria a de que queremos, sim, que essas pessoas pensem sobre as ramificações mais amplas do que estão fazendo. Seria tenebroso viver em um mundo em que pessoas têm essa quantidade de poder — capaz de desestabilizar o sistema político — e não pensam sobre como o exercem. Seria irresponsável não contemplar o que significará para o amplo sistema (político), para a mais ampla luta contra a corrupção, para o interesse público, ajuizar ou não ajuizar um determinado caso.
A dificuldade aqui está no fato de que ambas as interpretações polarizadas acima têm certa razão, não?! Há visões intermediárias também, no sentido de que não se deveria tentar prever as consequências, porque isso seria muito difícil. Talvez promotores e procuradores devessem pensar: “Olha, antes de acusarmos um presidente ou um ex-presidente de um crime, devemos ter uma exigência maior do que teríamos com uma pessoa qualquer”. Por exemplo, mais cedo, você aludiu ao fato de que Trump ainda não foi pessoalmente acusado formalmente de nenhum crime (relacionado aos eventos de 6 de janeiro). Eu suspeito que o nosso procurador-geral, Merrick Garland, caso venha a acusar formalmente Trump por algum crime, o fará apenas se a base jurídica para a acusação, bem como a base probatória para a acusação, estiver muito clara. Porque ele reconhece que essa ação seria potencialmente muito desestabilizadora para o sistema político.
O presidente Trump tem muitos apoiadores, muitos eleitores, e uma parcela deles são apoiadores fervorosos. Processar um ex-presidente é realmente uma grande questão. Abre um precedente para que o Departamento de Justiça sob uma administração presidencial acuse o ex-presidente da administração anterior, que pertence a um outro partido… É extraordinariamente sensível. Assim, mesmo que você acredite — como eu — que presidentes não estão acima da lei, eu penso ser possível defender a ideia de que o patamar de exigência que se deve ter como procurador perante um caso desses é simplesmente maior.
Então, eu realmente não sei o que agentes públicos nessa posição devem fazer. Eu acho que é muito desafiador. Tendo a me posicionar de forma intermediária. Eu realmente penso que eles devem ter consciência das consequências sociais e políticas de suas decisões. Penso que é um pouco ingênuo dizer “nós vamos apenas seguir as provas e, se acreditarmos que um crime foi cometido, apresentar a acusação”. Penso que promotores e procuradores devem considerar o interesse público de forma ampla.
Para encerrar a entrevista, gostaria de fazer duas perguntais mais genéricas. Como um professor de Direito em uma das universidades mais renomadas do mundo, que conselhos você daria aos estudantes de Direito sobre como aproveitar o tempo deles na faculdade? E que conselhos você daria a jovens profissionais que querem seguir uma carreira acadêmica?
Como os leitores talvez já saibam, o ensino jurídico nos Estados Unidos é um pouco diferente do Brasil e da maior parte do resto do mundo. Nos Estados Unidos, a educação jurídica é exclusivamente em nível de pós-graduação. Então, todos os nossos alunos já têm um primeiro diploma universitário em alguma outra área. Já no Brasil, sei que muitos alunos fazem mestrado e doutorado em Direito e, usualmente, também a graduação em Direito. Menciono essa diferença porque o conselho que eu daria a um jovem de 25 anos estudando Direito pela primeira vez talvez seja um pouco diferente do que eu daria a um de 18 anos.
Então, um dos conselhos que sempre dou aos meus alunos é o de tentar descobrir o quanto você aguenta fazer na Faculdade de Direito e, depois, tentar fazer 10% a mais do que isso. Porque o período de faculdade é incrível e muitas vezes os alunos não percebem isso até ir embora. E realmente vale a pena tentar se esforçar além do que você acredita que são os seus limites. Não excessivamente, claro. Não queremos que as pessoas fiquem sobrecarregadas ou tenham colapsos nervosos… Mas tente fazer um pouco mais do que você imagina que você aguenta, porque eu penso que muitas pessoas, especialmente aqueles alunos mais brilhantes e talentosos que eu ensino, podem fazer mais do que eles imaginam que podem.
Outro conselho que dou é não focar excessivamente. Não tente descobrir exatamente o que você quer fazer profissionalmente e construir toda a sua formação jurídica como uma preparação para esse trabalho específico. Há muitas formas diferentes de ter uma carreira jurídica gratificante e de sucesso. Acho que é útil explorar, matricular-se em aulas diversas, em aulas interdisciplinares… Misturar as coisas é geralmente algo bom de se fazer na Faculdade de Direito.
Para quem quer se tornar professor de Direito, tente descobrir no que você está interessado, no tipo de pesquisa e escrita jurídica que você está interessado e encontre oportunidades de escrever sempre que puder para ter certeza de que você realmente gosta disso. Tente também se expor a diferentes produções acadêmicas para ter uma ideia melhor do tipo de produção acadêmica que você quer fazer. E tente achar a sua própria voz e fazer as suas próprias contribuições. Ao menos na academia jurídica dos Estados Unidos, ser um professor de sucesso não é exatamente sobre o quanto você sabe sobre o Direito, mas sim sobre ter ideias interessantes sobre o Direito, que você está disposto a compartilhar com um público maior e de forma clara.
Victor Aguiar de Carvalho – Doutor e mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Procurador do Estado do Rio de Janeiro e advogado. Foi Visiting Researcher e atualmente cursa o LL.M. na Harvard Law School
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