No campo da política: Pelé e o desafio no Ministério do Esporte – A Tribuna
Sexta-feira, 30 de Dezembro de 2022
Esportista nato, Pelé evitou jogadas mais arrojadas no campo político. Nas entrevistas que concedia, sempre procurou escolher bem as palavras para não desagradar a nenhuma corrente de pensamento. Contudo, no ano de 1995, ele resolveu encarar o desafio de ser ministro do Esporte. Convidado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, o Rei do Futebol ficou no cargo até 1998.
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No documentário Pelé, lançado pelo streaming Netflix no ano passado, Pelé comenta os tempos de ministro. “Nós tivemos alguns problemas durante a minha carreira, porque os caras misturaram política com futebol. Quando aceitei trabalhar com o Fernando Henrique Cardoso como ministro do Esporte, foi porque achava que era o momento de ajudar o Brasil”, disse, em depoimento.
Em sua passagem pela pasta, o Rei foi o responsável por criar a Lei Pelé, que revolucionou a prática desportiva no País. A legislação surgiu com o intuito de oferecer mais transparência e profissionalismo ao esporte nacional.
Com isso, houve o fim do passe nos clubes de futebol do Brasil e a transformação deles em empresas. A Lei Pelé também criou verbas voltadas aos esportes olímpico e paralímpico, entre outros tópicos contemplados.
“É importante destacar que essa lei vai além do futebol e introduziu normas importantes para todas as modalidades esportivas, a exemplo do Artigo 18-A (colocado em alteração em 2013 e, depois, em 2018), que prevê os requisitos para as associações sem fins lucrativos obterem recursos da Administração Pública Federal, principalmente por meio da Lei de Incentivo ao Esporte”, detalha Márcio Cruz, que é advogado especialista em Direito Desportivo.
Dificuldade
A Lei Pelé foi sancionada em 25 de março de 1998. A medida garantia que o passe nos contratos de jogadores de futebol fosse extinto no prazo de três anos — no caso, em 2001. Até então, o jogador vivia preso ao clube, mesmo quando o seu contrato chegava ao fim.
“O início da Lei Pelé no mercado brasileiro causou grande preocupação para os clubes, que iam assumir compromisso de longo prazo com um jogador sem saberem se o atleta teria ou não condições de entregar uma boa atuação durante todo esse prazo. Então, houve certa dúvida no começo. Alguns clubes contratavam jogadores por um ou dois anos, mas depois, a partir de 2002, 2003, criou-se um mecanismo de proteção dos clubes e dos jogadores, com contratos mais longos e estipulando gatilhos de aumentos salariais pela produção, pelo número de partidas jogadas, por exemplo”, recorda Fernando Carvalho, ex-presidente do Internacional — em um dos períodos mais vitoriosos da história do clube, quando foi campeão da Libertadores e do Mundial em 2006.
Porém, nem tudo saiu como o esperado. Promissora na teoria, e até eficiente em alguns casos, a Lei Pelé encontrou dificuldades na prática, pois os jogadores passaram a ter o destino controlado por empresários, muitos deles preocupados exclusivamente com o dinheiro e não com as carreiras dos atletas. Com isso, os clubes se enfraqueceram, especialmente aqueles que viviam da formação de jogadores.
“Os clubes que não se prepararam e demoraram para se adaptar sofreram muitas dificuldades. Alguns até tradicionais do Interior de São Paulo fecharam as suas portas, prejudicando a formação e a revelação de talentos”, relembra Marcelo Teixeira, ex-presidente do Santos.
Lamento
A coisa chegou a tal ponto que o próprio Rei lamentou a situação da Lei Pelé. “Antes, o jogador ficava cinco, dez anos no mesmo clube. Hoje, não é mais assim. Muitos empresários levam jogadores para a Ásia, a Rússia e os esquecem lá, fazem o que quiserem. Então, tem essa parte ruim, que o clube não é mais dono do jogador”.
Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB Santos, Rafael Cobra lembrou desse impulso que ganhou a figura dos agentes no futebol, o que também tornou obrigatória a separação do joio do trigo. “Como em todo mercado, há bons e maus profissionais e se faz sempre necessário que o próprio mercado faça tal filtro.
É importante destacar que, inclusive, há regulação própria, com recente alteração, da Fifa e CBF, para se atuar legitimamente como ‘agente’, seja representando atletas e/ou clubes”, explica o advogado.
Uma realidade irreversível
A realidade que a Lei Pelé tornou possível é irreversível, segundo o ex-presidente do Internacional Fernando Carvalho. “Hoje, não temos nenhuma condição de voltar para o sistema anterior. Estamos plenamente acostumados com o regramento da Lei Pelé, que criou a relação contratual, na qual são estabelecidas, além das regras salariais e de remuneração, as cláusulas penais indenizatórias e compensatórias por rescisão do contrato e venda do atleta. Os clubes brasileiros estão completamente adaptados a esse novo sistema. Se em um primeiro momento ele foi malvisto pelos clubes, hoje está bem aceito e assimilado. Não vejo como haver retrocesso”, comenta.
No entanto, existe quem tenha esse desejo. Foi aprovado recentemente, na Comissão do Esporte da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 3353/2021, de autoria do deputado federal Luciano Bivar (União-PE, ex-presidente do Sport Recife), com o objetivo de retornar com o passe de atletas com detenção única e exclusiva dos clubes.
“Isso se traduz em verdadeiro retrocesso social, totalmente contrário à Constituição Federal e a todo o sistema legislativo desportivo universal, razão pela qual, se vier a ser concretizado como lei, provavelmente será declarado inconstitucional”, observa o advogado Márcio Cruz.
O tempo descaracterizou a Legislação
A Lei Pelé também impôs regras às entidades desportivas para a concessão de isenções fiscais e de repasses de recursos públicos. Porém, ao longo do tempo, foi sofrendo mudanças que a descaracterizaram. Em 2000, foi revogado o dispositivo que tornava obrigatória a instituição do clube-empresa para funcionamento de esportes profissionais. A discussão antecipava, em ao menos duas décadas, o que atualmente se define como Sociedade Anônima do Futebol, a SAF, na qual uma empresa compra o futebol do clube.
“Um ponto que também merece muita atenção é relacionado ao direito de transmissão, a despeito da discussão envolvendo os contratos vigentes entre clubes e emissoras, para dar maior autonomia aos clubes para negociarem os direitos de transmissão, fomentando a concorrência entre as emissoras, privilegiando, principalmente, os torcedores, ampliando a possibilidade de fortalecimento das transmissões via streaming, seja através dos canais próprios dos clubes ou pelas plataformas especializadas nesse formato”, observa Marcelo Teixeira.