O adeus ao Golias, patrimônio cultural de Vitória – A Gazeta ES

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Certas pessoas têm o dom de marcar uma época e inscrever seu nome na atmosfera emocional de um lugar, de uma cidade, em um tempo que não volta mais. Valter Vieira da Silva, o Golias, era um desses personagens. O rei dos discos de Vitória, que morreu no último sábado (5), aos 74 anos, fez a trilha sonora de várias gerações de aficionados por música em Vitória, nos mais de 50 anos em que comandou a Golias Discos, a mais tradicional loja do ramo no Espírito Santo.
Mais do que referência, a Golias Discos tornou-se um patrimônio cultural de Vitória. Sua trajetória se relaciona com o cenário musical da Capital, numa simbiose em que criador e criatura se misturam a tal ponto que se torna impossível dissociar um do outro. Quem conheceu o Golias sabe o quanto era fácil se afeiçoar ao seu jeito amável, a risada tonitruante e a sua alegria de viver.
Sua paixão pelos discos de vinil era inspiradora, ao passo em que a sua fidelidade à gravação analógica merece ser objeto de estudo. Afinal, o próprio Valter admitiu, no documentário “Admirável Golias” (2017), dirigido por Judeu Marcum, que perdera tudo em 1998 após a explosão do CD e a migração do comércio de discos para o formato digital. Na contramão do mercado, ele reabriria a loja um ano depois, vendendo os bolachões que tanto amava. O tempo mostraria que Golias estava certo, e os vinis renasceram nas mãos dos DJs e como modelo de negócio rentável.
Nos últimos anos, dizia ele, seu público era formado principalmente por jovens interessados nas raridades que disponibilizava em seu ponto situado na Rua Gonçalves Dias, 75, no coração de Vitória. Mas a história da Golias Discos remonta ao começo dos anos 1970, mais precisamente em 21 de dezembro de 1971, quando ele realizou o sonho de abrir a sua própria loja de discos, na Avenida Jerônimo Monteiro. Antes disso, ele trabalhou como vendedor na extinta Helal Magazin, na Rua Sete de Setembro, e chegou a rodar o mundo durante dez meses embarcado em um navio prestando diferentes serviços.
Foi na loja da Avenida Jerônimo Monteiro que a Golias Discos fez história, e ela está presente nas memórias afetivas de muitos ex-frequentadores daquele santuário do vinil, entre os quais me incluo.
Em 1985, eu era mais um dos garotos cujo passatempo principal era visitar a Golias Discos em busca de novidades que chegavam ao Brasil na esteira do Rock In Rio I. Passávamos tardes inteiras em sua loja ouvindo álbuns do Kiss, Queen, Iron Maiden, Scorpions, Whitesnake, Ozzy Osbourne, AC/DC, Van Halen, Led Zeppelin, Deep Purple, além de uma enxurrada de bandas que não sobreviveriam ao segundo disco, para, no final do dia, levar um único disco que cabia no bolso de um estudante ginasial. No balcão, o agitado Golias acolhia os cabeludos com sua simpatia habitual – ele talvez não soubesse, mas nós o víamos como um dos “nossos”, com seu cabelo rebelde, os óculos fundos, a barba imponente.
Viviam-se os tempos áureos do comércio na região, onde funcionavam também a Discoteca do Messias e a Casa do Disco, entre outras lojas, numa época em que a venda de discos representava um negócio lucrativo. Nos anos 1990, o advento do CD provocaria uma transformação nesse mercado. Simultaneamente, a explosão de shopping centers dava início ao processo de deslocamento do comércio do Centro para a zona leste da capital. Alheio às tendências, Golias manteve seu negócio ativo no Centro de Vitória, passando pela Rua General Osório, a Vila Rubim e o Mercado da Capixaba, seu point preferido e ao qual sonhava retornar após a revitalização do espaço.
Em todos esses locais, Golias cativava clientes de todas as idades, a exemplo do meu pai, João Luis, um dos colecionadores de vinis que ele recebia de braços abertos nas lojas da General Osório e da Vila Rubim. Mais do que comprar discos, os clientes frequentavam o local para captar as boas energias do proprietário. Diante das paredes e estantes repletas de bolachões, faziam-se amizades e compartilhava-se o amor pelos discos, tendo como anfitrião o nosso saudoso Valter Vieira da Silva, aquele que, um dia, herdou o apelido do comediante Ronald Golias em função de seu jeito engraçado e adorável. Não foi por acaso que a sua passagem, no último final de semana, provocou comoção em Vitória.
Agora que estamos órfãos de sua alegria, é hora de reformar o toca-discos, trocar a agulha e colocar um velho LP para rodar – de preferência, de Frank Sinatra, Sammy Davis Jr., Ray Charles ou Pink Floyd. De onde estiver, Golias vai aprovar a trilha sonora com sua risada inconfundível.
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