O desafio da reconstrução da política ambiental – JOTA

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novo governo
Recursos orçamentários historicamente destinados ao MMA e suas autarquias estão exíguos
O governo Bolsonaro cumpriu sua promessa de implodir com a Política Nacional do Meio Ambiente, construída ao longo de décadas. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) deixou de produzir políticas públicas e operou como agente ativo do desmonte ambiental. A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) e o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) foram deslocados para outros ministérios.
O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) foram sobretudo deslegitimados, a partir da própria narrativa do presidente da República, e tiveram suas atividades boicotadas, com a nomeação de chefias alinhadas com o projeto de desmonte.
Esse projeto envolveu também a paralisação injustificada no uso de recursos disponíveis, como ocorreu com os mais de R$ 3 bilhões do Fundo Amazônia que estão congelados desde janeiro de 2019[1], além da extinção de planos e programas como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm)[2], que reduziu o desmate na região em 83% entre 2004 e 2012.
Complementando o policy dismantling[3], vieram as centenas de “boiadas” capitaneadas pelo ex-ministro Ricardo Salles, retrocessos normativos principalmente no plano infralegal, com destaque para a flexibilização das regras sobre exportação de madeira, que foram objeto de contestação no Supremo Tribunal Federal (STF), e mudanças no processo sancionador ambiental[4] para beneficiar infratores. As boiadas também resultaram em um golpe no Acordo de Paris, com a “pedalada climática” efetivada pela atual gestão, que viabilizou o aumento das emissões brasileiras[5] a partir de artimanhas contábeis.
Foi um projeto bem-sucedido, com consequências trágicas, como a maior taxa de desmatamento na Amazônia em 15 anos, a devastação de um terço do Pantanal, e a explosão dos garimpos ilegais e da invasão de terras indígenas e Unidades de Conservação, acompanhada do agravamento de conflitos sociais[6].
O trabalho de reconstrução a ser feito nesse campo de políticas públicas é complexo e enorme. Mas podemos e devemos aproveitar este momento não apenas para retomar políticas importantes que vinham sendo implementadas antes do governo Bolsonaro, como também para avançar.
Entre as grandes economias do mundo, o Brasil poderá ser o primeiro país a chegar a um status de carbono negativo, sequestrando mais carbono do que emite e se tornando uma potência ambiental. Mesmo sendo o quinto maior emissor de gases de efeito estufa do planeta, temos um quadro de emissões que nos coloca em posição privilegiada para agir nesse campo[7].
Quase metade de nossas emissões vêm do que os técnicos chamam de mudança de uso da terra, basicamente desmatamento[8]. É evidente que o controle do desmate não é tarefa simples, mas temos experiências anteriores que nos encorajam, como o já citado PPCDAm, enterrado em 2019.
O Brasil de 2022 não é o mesmo de duas décadas atrás, mas sabemos que o enfrentamento do desmatamento impõe atuação conjunta de vários ministérios, com reforço das ações de comando e controle acompanhado do estímulo a atividades produtivas sustentáveis e da correta destinação das áreas públicas. A retomada do PPCDAm e do seu equivalente em outros biomas, especialmente o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado (PPCerrado), deverá ser guiada por essa perspectiva.
Será necessário financiamento. Os recursos orçamentários historicamente destinados ao MMA e suas autarquias estão exíguos. Houve piora nesse sentido no governo Bolsonaro[9]. Nesse âmbito, a retomada do Fundo Amazônia é um dos primeiros passos a serem dados. A tendência é de aumento das doações internacionais para o Brasil, como ficou evidente na recepção ao presidente eleito na COP27, no Egito. De pária nos últimos quatro anos, o Brasil pode voltar a  assumir posição de liderança em negociações internacionais.
Uma preocupação é o posicionamento do novo Congresso Nacional em relação a projetos que representam graves retrocessos, no chamado “Pacote da Destruição”[10]. Algumas dessas propostas podem ser votadas ainda em 2022, se depender dos integrantes da Frente Parlamentar da Agropecuária.
Essa lista inclui a futura “Lei do Veneno”, uma nova lei sobre agrotóxicos que, entre outros problemas graves, some com a vedação de registro de produtos cancerígenos ou que causem distúrbios hormonais; uma versão para a Lei Geral do Licenciamento que retira a exigência de licença de grande número de empreendimentos e prioriza o autolicenciamento, além de desrespeitar os direitos dos indígenas e de outros povos e comunidades tradicionais; a “Lei da Grilagem”, que busca atender grandes grileiros com regras mais flexíveis; o projeto do Poder Executivo que pretende viabilizar garimpos em terras indígenas e a proposta de consolidar a tese absurda do marco temporal. Recentemente, a lista do “Pacote da Destruição” foi ampliada e passou a abranger a destruição das normas de proteção da mata atlântica e a liberação da caça no país, entre outros temas.
Todos os esforços dos ambientalistas estão direcionados a impedir que essas propostas sejam votadas em 2022. Com o novo governo, a expectativa é que o peso político do Executivo ajude a barrar esses projetos.
O momento pede esperança e colaboração para o enfrentamento do desafio de reconstruir a política ambiental, sem descuidar do monitoramento sistemático do cumprimento das promessas de campanha. Afinal, como afirmou na COP27 o presidente eleito, “não há segurança climática para o mundo sem Amazônia protegida”. Segundo ele, o combate à mudança do clima terá “o mais alto perfil” na estrutura do próximo governo e “os responsáveis por qualquer atividade ilegal, seja garimpo, mineração, extração de madeira ou ocupação agropecuária indevida”, serão punidos. Vamos cobrar.
[1] Ver a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) nº 59, relatada pela ministra Rosa Weber.
[2] Ver a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº760, relatada pela ministra Cármen Lúcia.
[3] Ver Michael W. Bauer e outros, Dismantling Public Policy. Preferences, Strategies, and Effects. Oxford: Oxford University Press, 2012.
[4] Ver ADPF nº 755, relatada pelo Ministro Luiz Fux.
[5] Ver:  https://www.oc.eco.br/jovens-processam-governo-por-pedalada-climatica/ e https://www.oc.eco.br/governo-perde-na-justica-argumento-sobre-pedalada-climatica/. Acesso em: 22 nov. 2022.
[6] Ver: https://www.oc.eco.br/wp-content/uploads/2022/02/A-conta-chegou-HD.pdf. Acesso em: 22 nov. 2022.
[7] Ver: https://www.oc.eco.br/brasil-2045-construindo-uma-potencia-ambiental-vol-1/. Acesso em: 22 nov. 2022.
[8] Ver: http://www.obt.inpe.br/OBT/assuntos/programas/amazonia/prodes. Acesso em: 22 nov. 2022.
[9] Ver: https://www.oc.eco.br/wp-content/uploads/2022/02/A-conta-chegou-HD.pdf. Acesso em: 22 nov. 2022.
[10] Ver: https://www.oc.eco.br/wp-content/uploads/2022/03/Combo-da-morte.pdf. Acesso em: 22 nov. 2022.
Suely Araújo – Urbanista e advogada, doutora em ciência política, professora do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, ex-presidente do Ibama
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