O Limite que Alcançamos – a escatologia política cotidiana – Reconta Aí

0
65

Parecemos viver um período de dessensibilização, onde atos, falas e posturas não encontram mais indignação ou repulsa coletivas. Nada nos espanta ou incomoda. E nos perguntamos como chegamos até esse ponto.
Em 1997, trabalhei com uma professora da USP em uma pesquisa sobre propagandas governamentais a partir da redemocratização. Este trabalho, entre outros, foi convidado a apresentar dados e conclusões em um seminário no Senado Federal. Antes da apresentação da professora responsável, um publicitário muito renomado, ex-diretor da maior emissora de TV do Brasil, fazia a sua exposição. Em um certo momento, afirmou a tendência que teríamos em sabotar nossa própria imagem, de produzir um anti-marketing. O exemplo foi Galdino Jesus dos Santos, um cidadão pataxó que estava em Brasília, havia sido assassinado, queimado vivo, dias antes, provocando comoção nacional. E o expert em comunicação raciocinou em voz alta, no microfone, sem pejo algum. Justamente um indígena, que atraía os olhos de todo o mundo. Ao menos se fosse um nordestino sem teto, o estrago de imagem seria menor.
Nosso grupo olhou espantado. A quase totalidade dos senadores presentes mal ouviu, não se importou ou, talvez, nem prestasse atenção. Talvez até concordassem, alguns, com as palavras cruas e profissionais do respeitado publicitário. Não sei dizer, mas apenas um senador (falecido, quase um ícone da direita política brasileira) se levantou e interrompeu a apresentação. Lembrou que o próprio palestrante, embora sequer se lembrasse, era do Nordeste, proferiu palavras duras e praticamente o expulsou do recinto. Nomes consagrados da chamada esquerda política nacional ficaram tão inertes quanto a maioria. O publicitário, constrangido, teve de se desculpar ao público. E foi embora, ainda sob um clima de revolta gerado pelo senador. A palestra e a reação não foram notícias em jornais.
Ao relembrar o sentimento da opinião pública naquele período, registramos que a indignação era exibida pela mídia. A mesma emissora, em que o autor da frase bárbara no Senado trabalhou por anos, insistiu no tema por mais tempo que o previsto. O fato de serem de serem cinco jovens (quatro adultos e um menor) privilegiados, filhos de pessoas bem alocadas na vida pública da Capital, causou ainda mais celeuma. A cereja do bolo naquele caso foi a justificativa: “era uma brincadeira, achamos que era só um mendigo”.
A ascensão desses jovens em suas futuras carreiras diz muito sobre o sorriso maldoso que impera em nossos cotidianos há décadas. Todos ocupam cargos públicos e têm suas certidões negativas de antecedentes criminais (condenações de crime hediondo triplamente qualificado). Trabalham no Senado, em Tribunal de Justiça, no Detran, no Governo do DF e na Polícia Rodoviária Federal. Todos recebem mais de 15 mil reais, benefícios e gratificações. Se houve alguma indignação, o que mudou em 25 anos?
Nada, talvez. Aparentemente, nossa repulsa ao que pode se chamar de um ato hediondo é midiática. Tudo o que houve de simbólico naquele evento – cinco filhos da elite brincando com uma peça descartável, com um objeto de exploração, prazer e distração, queimaram carne humana viva. O fato de ser um indígena, e não um nordestino qualquer, foi apenas inconveniente. Tínhamos o dever de mostrar publicamente que não somos assim. Não matamos indesejáveis se o crime for divulgado e pegar mal. Mas mantemos a indiferença com violências similares diárias e mais justificáveis. Aos olhos de uma sociedade que, com uma minoritária resistência, assimilou que “bandido bom é bandido morto”.
E sabemos, no fundo, que todos os pobres e fracassados são bandidos. Boa parte dos derrotados de nascença também se compraz com o sadismo escancarado, com a medalhas dos bem nascidos. É a maneira de se diferenciarem, de escaparem da marca de classe que renegam, do medo constante de se identificarem com o rebotalho do andar logo abaixo. De pedofilia a canibalismo, tudo o que vier do alto da pirâmide não importa mais. Os que resistem não possuem voz pública e não podem ecoar suas histórias e razões. Suas vidas são feias. Não há espaço de convencimento possível. Sempre vivemos em uma província onde a lei e a terra eram de poucos, e a nossa raiva e os nossos direitos eram massacrados com celeridade. Mas, agora, o esforço da elite de conquistar corações e mentes avançou em seus objetivos.
Se há uma pequena mudança, está na mídia que comanda as emoções coletivas e os valores considerados civilizatórios. Hoje os faraós embalsamados podem exigir não pagar seus impostos, comprar armas e jet-skis à vontade, exibir seus desejos de posse total dos corpos que lhes servem, praticar extermínios em favelas com seus cães fardados, glorificar sua força sobre os que nada têm, saírem ilesos e santificados pelas próprias vítimas. Compraram o Estado, Deus, seus juízes e seus arautos.
O momento em que vivemos é uma brecha inimaginável para a resistência neste cenário. Um primeiro passo, ao menos um nec plus ultra. Ou mostramos que ainda temos uma réstia de amor próprio ao eleger um de nós, ou assistiremos acuados uma realidade sem limites. Uma realidade onde Galdino e muitos de nós não apenas seremos queimados vivos, mas servidos com bananas.
Faça parte do nosso canal Telegram Siga a página do Reconta Aí no Instagram Siga a página do Reconta Aí no Facebook Adicione o WhatsApp do Reconta Aí para receber nossas informações Siga a página do Reconta Aí no Linkedin
RECONTA AÍ, 2021 © TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.

source

Leave a reply