O processo constitucional promove o bem de todos? – JOTA

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A gravidez é uma experiência única e deve ser tratada como tal
Pesquisadores de variadas expertises se unem para, com independência, conciliar a agenda acadêmica com a velocidade da imprensa no debate da conjuntura política nacional.
No último dia 14 de outubro, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal negou, por maioria, o Agravo Regimental no Habeas Corpus (HC) 220.431. Na peça, a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul pedia pela interrupção de gravidez de fetos (gêmeos siameses) inviáveis. O relator da decisão foi o ministro André Mendonça – recém-indicado pelo presidente da República – e sua decisão foi acompanhada pelos ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Nunes Marques.
Em linhas gerais, a decisão do relator se baseou em três argumentos. Primeiro, o relator entendeu que o julgamento não poderia ocorrer, por um problema processual. O caso não teria sido propriamente apreciado pelas instâncias inferiores, de forma a tornar ilegal eventual pronunciamento da turma sobre a matéria de fundo – a possibilidade ou não da interrupção da gravidez. Para tal, a matéria deveria ser analisada, em um primeiro momento, pelo colegiado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e, em seguida, pelo colegiado do Superior Tribunal de Justiça.
Em segundo lugar, o relator entendeu que não haveria coação ilegal que autorizasse a atuação do STF em sede de habeas corpus, já que a lei não estaria sendo violada. O caso, segundo o ministro, não se tratava da hipótese de aborto médico prevista na excludente do artigo 128, I, do Código Penal. Por fim, entendeu não ser possível trazer ao julgamento de um agravo em habeas corpus a discussão sobre a aplicabilidade ou não da ADPF 54 à hipótese. A ADPF 54 é a decisão na qual o STF entendeu, por maioria, que a interrupção da gravidez, em casos de anencefalia fetal, não configurava o crime de aborto. Isso vai de encontro ao que já foi feito por uma das turmas do tribunal anteriormente, no julgamento do HC 124.306
A decisão do caso não foi unânime. O ministro Edson Fachin divergiu, argumentando que a interrupção da gravidez no caso de inviabilidade fetal seria necessária para resguardar a vida e a dignidade da mulher, de forma que a racionalidade expressada na ADPF 54 seria aplicável ao caso, mesmo que a anomalia não fosse necessariamente a mesma.
Ainda que todos os argumentos propostos pelo relator sejam passíveis de críticas, o presente artigo tem como objeto a questão processual da vedação de supressão de instâncias, que permite refletir não apenas sobre o caso em si, mas sobre o direito processual como um todo e sua relação com a desigualdade.
Não é nenhuma inovação dizer que desigualdades são perpetuadas pelo direito. De maneiras mais óbvias – através de leis que diferenciam grupos como homens e mulheres, brancos e não brancos, ricos e pobres (e por aí vai) quando não há justificativa – mas também – e talvez mais importante – de maneiras não óbvias. Uma dessas maneiras não óbvias é a forma pela qual o direito é construído.
Regras são informadas por visões sobre o que é certo, errado, justo e injusto. E essas percepções, por sua vez, são informadas por experiências. Que regras processuais são importantes é algo inegável. Mas, é necessário questionar por que elas são como são, como foram estabelecidas, o que protegem e o que deixam de proteger. E, de maneira ainda mais profunda, devemos nos perguntar quais as experiências que são excluídas ou incluídas no cálculo do que é justo ou injusto.
O direito processual é um dos pilares do Estado Democrático de Direito – é a existência de um processo que traz legitimidade para decisões. A vedação da supressão de instâncias – regra que justifica a decisão do ministro André Mendonça – é parte desse contexto. Entretanto, a necessidade de que matérias sejam apreciadas por instâncias inferiores antes que tribunais superiores possam se posicionar é algo que, na maioria dos casos, causa demora na resolução de casos. Isso é um problema geral: ninguém quer ter que esperar anos por uma decisão final. Mas ela também é um problema específico para casos como aquele decidido no agravo: uma gravidez tem prazo de validade e a vedação da supressão de instâncias tem, nesse caso, consequências particularmente nocivas.
Os danos sofridos por mulheres grávidas que não desejam estar grávidas duram mais do que nove meses – mas, a possibilidade de terminar o sofrimento de maneira mais rápida possível mitiga uma situação de sofrimento. Enquanto esperar anos para ver um litígio terminar em casos comuns possa ser frustrante, esperar meses ou anos por uma decisão sobre uma gravidez exclui uma parte da população. Esse grupo sofre um dano que outros grupos não sofrem, mesmo que a norma seja “objetiva” e aplicável de maneira igual a todos. A experiência da gravidez é desconsiderada, apagada na pressuposição de que todos são iguais perante a lei.
Um bom exemplo para pensar sobre a relação entre direito processual e a exclusão de experiências de certos grupos é a prescrição em casos de abuso de vulneráveis. Antes de 2012, a prescrição para o crime de estupro de vulneráveis era de 20 anos, a contar do fato. Ocorre, entretanto, que esse tipo de abuso não é facilmente identificável por menores e, quando identificável, é muitas vezes ocultado por vergonha, culpa ou até por pressão de familiares. Assim, a regra de prescrição deixava de proteger esse grupo, porque a norma não levava em consideração como o abuso era experienciado por menores. Em 2012, entrou em vigor uma lei que modificou a situação, prevendo 20 anos de prescrição, a partir da maioridade da vítima. Essa regra tem como objetivo lidar com situações tal qual elas acontecem no mundo dos fatos.
O caso do aumento do prazo para prescrição de abuso de menores é um bom exemplo sobre como incluir experiências previamente excluídas na formulação de um direito protetivo. A gravidez, infelizmente, ainda é tratada como se fosse mais uma experiência genérica (como uma rescisão contratual, um insulto, um roubo), sem que se considere o seu caráter único. O direito processual deveria se adequar a essa particularidade, não só como medida de proteção de indivíduos, mas como forma de proteger a igualdade do grupo.
O caso coloca em perspectiva também a ideia adotada por muitos de que o direito processual é (ou pelo menos deve ser) apartado de análises de direito material. Essa é uma divisão artificial e que, em casos como o presente, se mostra também subordinatória (ou seja, contribui para a perpetuação de desigualdades estruturais). Se o caso aqui discutido não é suficiente para provar esse ponto, basta lembrar do caso recente da menina grávida que teve seu caso protelado por uma juíza, também por meios processuais, de forma a barrar o acesso ao aborto legal. Ali, a relação íntima entre processo e matéria ficou escancarada, ainda que obscurecida pelo manto da objetividade.
O HC 220.431 comove e causa indignação a muitos, porque mostra, mais uma vez, uma mulher correndo contra um tempo juridicamente estabelecido, para lidar com uma situação física e emocional que ocorre no mundo dos fatos. É importante ressaltar aqui que, só no STF, o agravo ficou parado de 23/09/2022 a 14/10/2022 – ou seja, três semanas. Mas, para além disso, ele também nos mostra como o processo constitucional no Brasil, de maneira geral, ainda reflete a experiência de poucos e, portanto, serve a poucos. Esse problema não é puramente político: tem implicações jurídicas graves quando pensamos que a Constituição tem como valores fundamentais a construção de uma sociedade justa e a promoção do bem de todos.
Taís Penteado – Doutoranda na FGV Direito SP. Mestre pela mesma instituição e pela Yale Law School. Advogada
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