O que a última legislatura da Câmara nos diz sobre a política criminal brasileira? – JOTA

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Como saldo, não se enfrentaram as circunstâncias estruturais da criminalidade, das violências e da segurança pública
Ao referenciar as políticas de justiça, combate às violências e segurança pública, o relatório final do gabinete de transição do governo Lula noticia um cenário trágico no país. Rupturas, involuções e desmantelamentos são alguns de seus rastros visíveis.
O aumento do armamento, da letalidade policial, da criminalidade ambiental, da violência doméstica e das condições precarizantes do sistema prisional são índices que estampam o timbre do governo federal no último mandato. Dentro da dinâmica política brasileira, repleta de arranjos entre Executivo e Legislativo, não é de se estranhar, ou melhor, seguramente deve ser observada também a participação do parlamento para esse resultado.  
Ainda que seja imprudente denunciar ligações diretas e precisas do Congresso para a consecução desses índices, é, por outro lado, oportuno assimilar os recados deixados por ele. Se não é seguro decretar o seu impacto frontal, muito mais razoável é assumir a sua concorrência para o desfecho.  
A partir disso, uma modesta retrospectiva da atuação da Câmara dos Deputados na legislatura 2019-2023 pode fornecer impressões para a compreensão do quadro geral. Assim, o que pensa o Congresso Nacional e em que medida ele dialoga com as políticas criminais do governo Bolsonaro?  
Sobretudo com base nas retrospectivas levantadas pela Agência Câmara[1] na última legislatura, alguns destaques podem ser feitos.  
O ano de 2019, especialmente o seu 1º semestre, foi profundamente marcado pelo protagonismo de matérias envolvendo crime, criminalidade e segurança pública, de forma que, dentre 30 áreas, Projetos de Lei (PLs) que se relacionaram a direitos humanos encabeçaram o ranking de todos os apresentados, seguidos dos de direito penal e processual penal[2]. 
Durante a 1ª sessão legislativa – comum em consignar um maior número de PLs apresentados – proposições de flexibilização do controle e circulação de armas foram centrais, em especial aquelas que trataram da posse em propriedade rural e do fornecimento para caçadores, atiradores e colecionadores, os chamados CACs.  
Também em 2019 o Pacote Anticrime foi aprovado no Congresso, representando uma legislação ambivalente, onde retrocessos e avanços dividiram espaço sob uma visão pouco sistêmica e racional do ordenamento[3]. Dentre os tópicos de preocupação, decisivos para o agravamento das condições do sistema de justiça e prisional, a elevação do limite de cumprimento para 40 anos, a exasperação de penas, as obstruções de benefícios da execução, o recrudescimento da prescrição e a ampliação do rol de hediondos são alguns que certamente merecem relevo.  
O debate a respeito da prisão após 2º instância também recebeu considerável atenção na Câmara, tornando-se a maior expectativa de aprovação para o ano seguinte (2020) – antes da eclosão da pandemia e de todos os seus efeitos para a agenda congressual. O PL 166/18, que permitiria a prisão após condenação por órgão colegiado, e a PEC 199/19, que alteraria a Constituição para transformar REsp e RE em ações originárias no STF e no STJ, foram os seus carros-chefes.  
O ano de 2020, como é de se esperar, esteve fatalmente comprometido com o combate e mitigação dos efeitos da pandemia de Covid-19. Os trabalhos em matéria criminal estiveram, em alguma medida, escanteados. Entretanto, a pandemia não foi suficiente para desconsiderá-los completamente, tendo em vista que importantes pautas estiveram sob análise dos(as) deputados(as). A exemplo, foram aprovados e encaminhados ao Senado diversos projetos de agravamento de penas e de tipificação de novas condutas – é o caso do PL 5365/20, que sob uma justificativa insuficiente e populista cria o delito de Domínio de Cidades e prevê a criminalização explícita de atos preparatórios. 
A sessão legislativa de 2021 foi marcada, dentre outros pontos, pela revogação da antiga Lei de Segurança Nacional e pela aprovação de uma nova norma sobre o assunto. Também obteve destaque na Câmara a aprovação do PL 5391/20, agravando o cumprimento da pena de condenados(a) por homicídio contra policiais ou militares[4]. O PL 2416/15, apesar de ter sido importante passo para a fiscalização da atividade policial pelo uso de equipamentos de gravação e registro, foi encaminhado ao Senado como sendo uma faculdade do poder público e não uma obrigatoriedade, contrariando a versão original e comprometendo a efetividade da proposta.  
Dentro do campo da segurança pública, o 1º semestre de 2022 foi marcado pela aprovação de diversos PLs relativos a casos de pedofilia e tipificação de delitos, como golpes pela internet e de repressão ao dito “novo cangaço”. O PL 5091/20, tornado Lei 14.321/22, definiu como crime a conduta de violência institucional. Já o PL 1360/21, convertido na Lei 14.344/22 (batizada de Lei Henry Borel), ainda que contenha medidas interessantes para o combate à violência doméstica contra crianças e adolescentes, apostou, paralelamente, no recrudescimento penal como saída. Ressalta-se ainda a aprovação da Lei 14.365/22 (PL 5284/20) que resguarda direitos de advogados(as) e clientes na persecução criminal. 
Ainda em 2022, a CCJ da Câmara aprovou o PL 2694/15 que, em síntese, amplia a participação da iniciativa privada no apoio a determinados serviços de segurança em presídios. A Câmara dos Deputados, além disso, aprovou e encaminhou ao Senado o texto-base do PL 442/91, que legaliza os jogos de azar, como cassinos e jogo do bicho. 
Em todos os anos da legislatura, o combate à violência contra as mulheres esteve em evidência na agenda parlamentar, com proposições penais e outras não. Em 2021, por exemplo, o PL 301/21 previu o aumento da pena dos crimes contra a honra no contexto de violência doméstica, e o PL 1568/19, a do feminicídio. É do mesmo ano a chamada Lei Mariana Ferrer e a Lei 14.188/21, que incluiu no Código Penal a violência psicológica contra mulheres.   
A conjuntura desenhada com o auxílio dos destaques é capaz de evidenciar que a contribuição da Câmara dos Deputados para o atual cenário das políticas criminais revelou fundamentalmente duas tendências: 1) a de agravar alguns dos seus sérios problemas e; 2) a de permanecer silente quanto a outros que deveriam ser enfrentados. 
Quanto se pensa sobre a primeira delas, inevitavelmente devem ser encarados os efeitos da flexibilização do controle e circulação de armas no Brasil e o papel permissivo que a Casa apresentou neste ajuste. Os decretos de Jair Bolsonaro somados aos PLs do Congresso não apenas trazem consequências letais como são também de penosa reversão – não por menos, para dar início a esse processo, o atual governo editou o Decreto 11.366/23 já no seu 1º dia. 
A tendência de inflação também foi persistente nas proposições de afetação do sistema de justiça e prisional. Foi evidente a disposição para não apenas arredar as (supostas) funções securitárias e ressocializadoras da punição como ainda para tornar a experiência prisional mais opressiva, sobretudo pelo aumento do tempo de cumprimento, das possibilidades dosimétricas desfavoráveis e da racionalidade penal retributiva. Por consequência, não parece ter havido entusiasmo legislativo para a garantia de direitos aos(às) apenados(as) ou para a redução dos danos na rotina das prisões brasileiras.  
A segunda tendência, por sua vez, fica bastante ilustrada na displicência quanto ao combate à criminalidade corporativa particularmente atuante em áreas ambientais sensíveis, representando vetores do garimpo ilegal e da extração ilegal de madeira. O aumento de 59% na taxa de desmatamento na Amazônia em relação aos quatro anos anteriores lamentavelmente parece não ter contado com a Câmara para o seu refreamento.  
Igualmente o combate à letalidade policial, que vitimiza sobretudo a juventude negra no país, não recebeu a seriedade e o comprometimento necessários da atuação parlamentar.  
O combate e prevenção à violência contra as mulheres apresentou tendência mista: ora agravou a problemática – quando optou exclusivamente pela repressão criminal como solução – ora permaneceu silente a ela enquanto dilema estrutural – quando não prestigiou com primazia medidas não penais de enfrentamento. Em ambos os casos se adotou a premissa de que o caminho lógico é o de que a repressão seria uma esperada e indiscutível política pública a ser empregada. 
Aliás, essa postura é assídua quando o sistema penal é convocado para confrontar problemas sociais complexos. É defendido como sendo suficiente e necessário, contrariando a lógica de ultima ratio. Tão facilmente, assim, política legislativa penal torna-se sinônimo de mais punição.  
Não cabe aqui referenciar cada um, mas em todos os anos da última legislatura a Câmara dos Deputados propôs ou aprovou PLs de agravamento de penas e/ou criminalização de novas condutas. O discurso penal que triunfou na eleição presidencial de 2018 encontrou eco na operação comezinha da Câmara.  
Como saldo, não se enfrentaram as circunstâncias estruturais da criminalidade, das violências e da segurança pública. Um sistema, seja representado no Executivo ou no Legislativo, que deveria ter por objetivo administrar pacífica e racionalmente os conflitos, acabou por respondê-los por uma lógica simplória e devastadora, simplesmente punindo por punir os sujeitos que neles estão envolvidos. 
Com o início do novo mandato presidencial e da nova legislatura, outros desafios são postos à luz, ainda que, no campo criminal, severas adversidades permaneçam estruturadas e estruturantes. Caberá nos mantermos vigilantes e diligentes, apostando que no futuro o Brasil possa contar com políticas criminais menos tirânicas, mais racionais e fundamentalmente baseadas em evidências.
[1] Retrospectiva 2019 – Segurança – TV Câmara – Portal da Câmara dos DeputadosRetrospectiva 2020 – Plenário – Rádio CâmaraCâmara dos Deputados – Retrospectiva 2021Câmara dos Deputados – Retrospectiva 2022 
[2] Sobre o assunto: A radiografia dos projetos de lei na Câmara em 2019 – JOTA  
[3] Sugestão de leitura: ConJur – Chiavelli Falavigno: A ausência de política criminal no Brasil  
[4] O PL previu a necessária alocação dos(as) acusados(as) no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), regime dotado de diversas limitações e digno de diversas e conhecidas críticas da comunidade acadêmica.
Iara Maria Machado Lopes – Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Coordenadora adjunta do Departamento de Estudos e Projetos Legislativos do IBCCrim e Coord. Adjunta do IBCCrim/SC. Especialista em Direito e Processo Penal pela ABDConst. Autora do livro “O sistema penal brasileiro em tempos de lavajatismo”
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