O que é uma política transversal. E o que é preciso para ela vingar – Nexo Jornal

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Novas ministras defendem que temas como meio ambiente e igualdade racial estejam no foco de diferentes pastas do governo federal. Entenda como isso pode acontecer e quais os maiores entraves
Depois de quatro anos de paralisação e desmonte de políticas públicas nas área ambiental e de direitos humanos, a ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, Marina Silva, e a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, disseram ao assumir o cargo que essas agendas serão tratadas no novo governo de forma transversal, não apenas por suas pastas.
“A transversalidade não é mais um desejo, um sonho, é uma realidade”
Marina Silva
ministra do Meio Ambiente e da Mudança do Clima, em discurso em Brasília no dia 4 de janeiro
Tema caro para a gestão pública, a transversalidade busca unir esforços para lidar com problemas sociais complexos, como a mudança climática e o racismo. Coordenar diferentes setores para enfrentá-las será um dos desafios do novo governo.
O Nexo explica o que é o conceito de transversalidade e como ela tem sido usada nas políticas públicas do governo federal no Brasil. Mostra também exemplos de ações transversais bem-sucedidas e os desafios de implementar esse tipo de iniciativa.
Transversalidade é um conceito usado nas políticas públicas para se referir ao tratamento de algum tema de forma interdepartamental (ou seja, de forma conjunta entre ministérios, secretarias, etc.), com a criação de fóruns horizontais de debate e tomada de decisão.
A ideia vem originalmente dos estudos sobre educação. Segundo autores da área, classificar o mundo em diferentes matérias escolares (história, geografia, biologia, física, etc.) esconde as conexões que existem entre essas disciplinas dentro de determinados temas. Para esses casos, é melhor que o estudo seja interdisciplinar.

A transversalidade ganhou espaço na gestão pública nos últimos anos. Gestores consideram que os problemas sociais estão cada vez mais complexos, e é necessário atuar de forma transversal para enfrentá-los. Temas como desigualdade, fome, mudança climática e racismo estão entre os que pedem cooperação de diversas pastas do poder público.
A transversalidade apareceu pela primeira vez nos planos do governo federal brasileiro em 2003, primeiro ano do primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, no momento em que integrantes da administração federal criavam o Plano Plurianual para os anos de 2004 a 2007.
O Plano Plurianual é uma lei de iniciativa do presidente da República que estabelece as metas e as diretrizes da administração federal para os quatro anos subsequentes. O texto serve para orientar o planejamento orçamentário para esse período.
O plano de 2003 afirmou que temas como gênero, meio ambiente, ciência e emprego deveriam ser transversais nas políticas públicas. Marina Silva, também ministra na época, foi uma das pessoas que defenderam esse modelo de gestão para a política ambiental.
Segundo livro publicado pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2009, essa nova estrutura não foi devidamente incorporada pela administração pública, que continuou a se organizar, em grande parte, por meio da divisão de tarefas por ministérios nos anos seguintes.
Apesar disso, o governo federal implementou alguns exemplos bem-sucedidos de políticas públicas transversais desde 2003. Além de áreas como meio ambiente e direitos humanos, temas como o combate à pobreza e à fome entraram no rol de iniciativas tratadas de forma mais ampla pelo Executivo.
Combate ao desmatamento
Criado em 2004, o PPCDam, Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal, é um exemplo de política pública transversal bem-sucedida do governo federal. Para enfrentar o problema, integrou Ministério do Meio Ambiente, Ministério da Ciência, Polícia Federal, BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e outras instâncias em ações de monitoramento da Amazônia por satélite, fiscalização in loco de atividades na floresta e restrição de crédito para desmatadores, entre outras medidas.
83%
foi quanto o desmatamento caiu na Amazônia entre 2004 e 2012, depois do início do PPCDam
Combate à fome
Criado em 2003, o programa Fome Zero uniu 19 ministérios para implementar políticas de combate à fome no Brasil. Entre essas ações, estão incentivos para a agricultura familiar, fortalecimento da alimentação escolar e concessão de benefícios sociais, como o Bolsa Família.
82%
foi quanto o número de brasileiros em situação de subalimentação caiu entre 2002 e 2013, segundo relatório da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura) publicado em 2014
Anielle Franco disse ao assumir o cargo de ministra, na quarta-feira (11), que deve trabalhar em parceria com ministérios como o da Educação, da Saúde e da Justiça para aprimorar políticas como a Lei de Cotas, o plano Juventude Negra Viva (que busca reduzir a letalidade policial) e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.
Fora essas ações, Anielle disse, sem citar políticas específicas, que quer se juntar aos ministérios da Fazenda e do Planejamento para incluir as demandas da população negra no Orçamento e à Controladoria-Geral da União para impulsionar políticas que “garantam efetivamente a democracia”.
Para ela, pastas como essas não podem funcionar sem um “recorte pontual e transversal sobre o racismo e a racialidade”, dado que raça e etnia são determinantes para a desigualdade de oportunidades no Brasil. “O compromisso com a igualdade racial no Brasil não pode ser o compromisso apenas deste ministério”, disse.
A transversalidade é considerada uma prática importante para representantes do movimento negro. Segundo a escritora Juliana Borges em entrevista à revista CartaCapital, ministérios como o da Igualdade Racial têm fundamentalmente o papel de articulação política com outras pastas.
Também em entrevista à CartaCapital, a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) disse que as políticas de igualdade racial não são temáticas. Não se trata de um sentimento, se trata de direitos de pessoas que são excluídas, disse, referindo-se a problemas como a fome, o desemprego e a violência, que atingem mais pessoas negras.
Do lado ambiental, diversos ministérios criaram instâncias específicas para tratar dessa agenda a partir de 2023. Entre eles, estão as pastas da Fazenda, Indústria e Comércio, Desenvolvimento Regional, Justiça, Relações Exteriores, Ciência, Agricultura, Pesca e Povos Indígenas.
Os ministérios têm objetivos diferentes ao criar essas instâncias (que variam entre secretarias, departamentos, diretorias, etc.). Na Polícia Federal, que está dentro da pasta da Justiça, a nova diretoria da Amazônia e Meio Ambiente deve conduzir ações de combate a crimes ambientais. Já no Ministério da Indústria, há uma nova secretaria de Economia Verde. Na pasta da Agricultura, há um departamento de Reflorestamento e Recuperação de Áreas Degradadas.
Marina Silva também tem o plano de criar uma Autoridade Nacional de Segurança Climática dentro do Ministério do Meio Ambiente. Com criação prevista para março, o órgão deve apoiar e monitorar políticas de combate à mudança do clima em todas as pastas do governo federal.
Segundo Marcio Astrini, secretário executivo da rede de organizações Observatório do Clima, essas iniciativas — parte delas inédita, como a autoridade climática — mostram a importância que a agenda ambiental ganhou nos últimos anos, com a intensificação da crise do clima e o aumento do desmatamento no Brasil. Para ele, a transversalidade é fundamental para o tema:
“Não adianta ter um ministério olhando para a agenda ambiental e vários outros causando problemas. Um dos principais problemas do desmatamento, por exemplo, é a grilagem. Não dá para o Ministério do Meio Ambiente lutar contra a grilagem e o da Agricultura permitir o registro dessas terras”
Márcio Astrini
secretário executivo do Observatório do Clima, em entrevista ao Nexo
Além do Brasil, outros países têm buscado tratar essa agenda de forma transversal nos últimos anos. Os Estados Unidos, por exemplo, têm uma secretaria de mudança climática ligada à Presidência da República. Enquanto isso, a União Europeia incorporou a pauta ambiental à sua política de comércio exterior, vetando, por exemplo, importações ligadas a desmatamento.
Segundo o texto de 2009 do Ipea, para alcançar a transversalidade não basta criar novas instâncias de governo. Os gestores e órgãos públicos devem estabelecer uma relação de confiança e cooperação, caso contrário, não é possível haver diálogo e tomar decisões em conjunto.
Outro desafio da transversalidade é o de não cair em um discurso vazio. Gestores públicos entrevistados pelo Ipea na época disseram que esse se tornou um conceito-curinga, usado em relatórios e reuniões para despertar empatia sem, no entanto, representar algo substantivo. A ideia também pode ser usada com o objetivo de diluir as responsabilidades sobre as políticas públicas.
Essas críticas não buscam desmerecer o papel da transversalidade nas políticas públicas, mas apontar caminhos para que as ações transversais dentro do governo sejam de fato bem-sucedidas, sem se limitar ao discurso ou à mera criação de secretarias, departamentos e comitês interministeriais.
Para Astrini, na área ambiental o sucesso da transversalidade depende do engajamento da Presidência da República. Na sua avaliação, Lula tem dado importância inédita ao tema no terceiro mandato. Em discursos desde a campanha eleitoral, o presidente tem prometido combater problemas como o desmatamento e usar a agenda climática para restabelecer o lugar do Brasil na comunidade global.
Entre os desafios atuais desse tipo de política, está o econômico, segundo o secretário executivo do Observatório do Clima. “O desmatamento na Amazônia está ligado à atividade ilícita. Não adianta tirar o crime de lá e não colocar nenhuma alternativa de vida para a população. Ministério do Planejamento, do Desenvolvimento Regional, da Economia, precisam fazer parte da solução”, disse.
Do ponto de vista da igualdade racial, a própria burocracia do governo federal pode contribuir para a promoção da transversalidade. Segundo a cientista Flavia Biroli, da UnB (Universidade de Brasília), em entrevista ao Nexo em 2022, a ação de agentes públicos técnicos (ou seja, que não estão no primeiro escalão, mas no dia a dia das políticas públicas) em governos anteriores do PT levou os temas de gênero e raça para áreas que não tratavam diretamente desses temas, como a de saúde.
Em coluna no Nexo do Movimento Pessoas à Frente, os especialistas em gestão pública Amanda Moreira e Giovani Rocha consideram um desafio para essa agenda a não priorização do tema na gestão pública. “O enfrentamento ao racismo é um problema complexo, que precisa de soluções múltiplas, envolvendo um esforço coordenado e um compromisso profundo de múltiplos atores”, escreveram. Esse esforço é “conflitante com o fato de que boa parte da coalizão necessária para enfrentá-lo ainda não o entende como um problema central para o país”. Para reverter isso, eles defendem a formação das lideranças sobre o tema dentro da gestão pública e o aumento da diversidade racial no funcionalismo.

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