O sofrimento mental causado pela disputa política – Extra Classe

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O sofrimento mental causado pela disputa política

Arte: Fabio Edy Alves sobre fotos de José Cruz (Abr) e CUT

Arte: Fabio Edy Alves sobre fotos de José Cruz (Abr) e CUT

Arte: Fabio Edy Alves sobre fotos de José Cruz (Abr) e CUT
Arte: Fabio Edy Alves sobre fotos de José Cruz (Abr) e CUT
Questões que envolvem saúde mental não são de hoje problemas em todo o mundo. A ansiedade, por exemplo, atinge quase 300 milhões de pessoas. Imagine isso, então, em ambiente de guerra. Não a da Ucrânia, mas a conflagração que marcou o recente processo da eleição presidencial no Brasil. Conhecido como sofrimento sociopolítico, ele – de uma forma ou outra, identificado ou não pelos vitimados – tomou proporções que ainda não foram dimensionadas oficialmente.
O caldo para lá de quente entornou nos consultórios psiquiátricos e nos divãs de análise onde a maioria da população brasileira não tem acesso.
Uma bomba-relógio que precisa ser desarmada no país, a qual, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), mesmo antes da pandemia, quando os mais atingidos foram jovens e mulheres, já detinha o maior número de ansiosos do planeta e a quinta população mais deprimida.
Essa bomba a ser desarmada originalmente se relaciona com a piora da pobreza, a desigualdade e a exposição a situações de violência da população.
Em artigos recentes, o filósofo, professor livre-docente na Universidade de Campinas (Unicamp) e presidente do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Marcos Nobre, é objetivo ao afirmar que o Brasil não está em uma polarização.
Para ele, o estado é de divisão. E isso acontece quando as regras do jogo parecem não mais serem suficientes para resolver os conflitos. Então, tornou-se necessária a construção de um novo pacto social que isole o extremismo de direita.
“Isso está trazendo sofrimento. Existe uma coisa que a gente chama de pacto social. São justamente as regras que a gente obedece na sociedade que tem na prerrogativa as pessoas terem direitos. Ter direito a subir em um elevador sem ser discriminado, ter direito a se casar, a ter uma vida conforme a sua opção sexual. Mais pessoas têm que ter direitos. O direito não pode ser só de alguns. Quando a gente coloca preconceitos no nível de intolerância, se passa a percepção de que alguns são mais cidadãos do que outros e de que alguns têm mais direitos”, diz a médica psiquiatra e psicanalista Arianne Angelelli.
Com 27 anos de prática clínica, trabalhando com adultos, mas especialmente com crianças e adolescentes, ela é categórica: “As pessoas realmente não estão conseguindo conversar. Eu nunca vi isso desse jeito, nesse nível”.
Entrevistado por Extra Classe duas semanas antes da votação de segundo turno, o também médico psiquiatra e psicoterapeuta de orientação junguiana Marco Spinelli – com 31 anos de experiência entre a clínica psiquiátrica e terapêutica – registrou que, na ocasião, não houve nenhuma consulta em que ele não teve que administrar uma sobrecarga de estresse por conta do embate eleitoral.
“Pessoas exasperadas. Uma paciente, por exemplo, caçando notícias, checando notícias; disrompeu e desarticulou o sono dela, piorando o quadro”, relata.
Segundo ele, diante de fatos assim, não é incomum ter que mexer na medicação ou mudar uma linha de conduta para atender a esse período de estresse coletivo dos pacientes.
Nessa divisão, uma coisa é certa. Todos, de todos os lados, acabam sofrendo. Uns em menor grau e outros em maior.
“Esse quadro atinge os dois lados da disputa, mas o nível de exasperação é maior em pessoas mais vulneráveis aos memes que são jogados nas redes falando o que ‘vai acontecer, a desgraça que vai acontecer’, caso um lado ou outro saia vencedor. É a catastrofização criada com imagens, criada com memes”, aponta Spinelli.
Ele cita o pavor de que uma filha vá para um banheiro unissex, no caso de um paciente bolsonarista, e no de uma paciente petista, que tem um casamento homoafetivo, “de que os gays vão ser caçados a pauladas nas ruas”.
Para Arianne, o embate tem dificultado as pessoas de pensar com clareza. “As pessoas estão se alinhando mais por percepção de valores do que de projetos políticos. A discussão ficou muito rasa. Houve um moralismo que permeou as discussões que deixou as pessoas muito angustiadas”, reflete.
No consultório, uma jovem adulta ficou muito mal, em especial, quando em 2018 Bolsonaro ganhou. “Ela se sentiu muito perseguida. Começou a falar: ‘Meu Deus, eu não vou mais poder sair na rua’. Ela começou a ter muito medo. Passou muito da conta, a ponto de ela não querer mais sair de dentro de casa. Entrou em um nível que teve que ser medicada porque estava com um grau de ansiedade muito forte e com sintomas paranoicos deflagrados pelo episódio eleitoral. Eu acho que se não houvesse a eleição, ela não iria precisar tomar medicação”, relata Arianne.
O incrível nisso tudo, para a psiquiatra, é que o outro lado também vê sua posição sendo atacada. “Por que as pessoas que não são homossexuais se sentem ameaçadas? Parece que essas pessoas que não são homossexuais se sentem ameaçadas pelas pessoas homossexuais”, questiona ao apontar um paradoxo.
Esse clima não vem de hoje, lembra Spinelli. “Vou dar um exemplo dramático. No fim de semana do impeachment da Dilma (2016), eu mandei três pacientes para internação. Duas ficaram francamente psicóticas: ora porque agora vem a direita; ora a esquerda vai inserir o comunismo; ora porque eles não vão deixar o impeachment ficar barato.”
O clima que se cria, considera Marco Spinelli, é de conflagração de uma guerra civil.  “Estilo a invasão do Capitólio lá nos Estados Unidos, onde havia também toda uma ameaça com o trumpismo, com milícias armadas que ‘não iriam deixar barato o reconhecimento da eleição do Biden’. O que eles conseguiram foi enfiar um monte de gente lá no Capitólio vestidos de bisão. Hoje está todo mundo preso ou sendo processado”, pondera o psiquiatra.
Já Arianne vê um forte clima de beligerância dentro das famílias, trabalhando com seus principais pacientes, crianças e adolescentes.
“As famílias também se cindiram. Nunca houve tanta briga; parentes que se deixaram de falar. Isso afeta a criança, o adolescente, mas também os adultos. Famílias, amigos com ponto de vista diferentes. Tudo isso acaba sendo fonte de sofrimento”, lamenta.
Para ela, “se a palavra boa para definir os adolescentes nesse momento é desiludido, as crianças são dependentes do estado psíquico de seus pais”.
Segundo a médica, se antes da adolescência não há ainda uma ideia tão clara do que está ocorrendo ao redor, “por tabela” as crianças estão sendo também muito afetadas. “Estamos vivendo um momento de ansiedade muito alto. As pessoas estão muito angustiadas, inseguras, em relação ao resultado das eleições e isso traz uma tensão para dentro da família. A criança responde diretamente a essa tensão”, explica.
No entanto, a maior preocupação de Arianne se encontra entre os adolescentes. “Vejo um impacto muito ruim entre eles. Eles estão muito chateados com essa situação.”
Tudo o que está ocorrendo, conforme Arianne, “é muito desesperador para ele (adolescente). Ele começa a perceber o tamanho da hipocrisia que existe no mundo adulto. Quanta mentira, quanta falsidade, quantas regras que não são cumpridas. Uma coisa é o que eu digo, outra coisa é o que eu faço”.
Isso, de acordo com a especialista, cruzado com uma das principais características dessa faixa etária, o “questionar tudo”, a faz ver nos adolescentes hoje em dia uma descrença, uma falta de fé, de esperança. “Essas notícias falsas que vão bombardeando a sociedade, que os adultos conseguem filtrar um pouco, para essa população impacta muito.”
Ela comemora quando percebe que um adolescente vai lá e questiona, “fica indignado porque a tia votou no Bolsonaro ou brigou com outro parente que votou no Lula. Ele ainda está investido por uma punção de vida, de um desejo de mudar o mundo. O que mais me preocupa são os adolescentes que estão desiludidos e que dizem ‘tanto faz, qualquer um que ganhe vai ser a mesma droga. Qualquer um que ganhe, o Brasil não vai melhorar nunca’. Imagina! Um adolescente que está começando a vida, que pode entrar em uma faculdade, arrumar um emprego já está achando que nada vai ter sentido”.
O reflexo é uma geração que se forma em bases individualistas. “Aquele adolescente idealista que queria fazer uma faculdade de Jornalismo, por exemplo, porque queria registrar o que está acontecendo, combater as inverdades, hoje diz ‘eu quero fazer uma faculdade de Engenharia para trabalhar em um banco para ganhar muito dinheiro e garantir o meu’. É mais ou menos ele dizendo que o mundo é tão hipócrita que quer fazer alguma coisa só para ele; não tem mais saída. Não tem mais aquela fé de mudar o mundo.”
Foto: Marcelo Menna Barreto
Marco Spinelli, psiquiatra e psicoterapeuta
Foto: Marcelo Menna Barreto
“Existe a instrumentalização do que a neurociência chama de flashforward, não um flashback. É fazer você ter uma visão catastrófica caso o outro vença. Isso está criando angústias, criando sintomas tanto de um lado quanto do outro”, diz Marco Spinelli, que chegou a publicar em seu Instagram um apelo para que as pessoas se apegassem à razão e não a brigar “com amigos, com parentes ou pessoas queridas, rompendo relacionamentos por conta desse momento político em que estamos vivendo, dessa floresta de memes e de fake news”.
Para o médico, o que acontece é o ódio instrumentalizado pelas novas mídias. “A extrema-direita ou qualquer extrema, fundamentalista, fez isso.”
De acordo com Spinelli, “hoje você consegue criar uma verdadeira seita on-line. Qual é o fundamento de você criar uma seita? Cria-se uma bolha. A informação não circula; só a informação que você quer colocar e se cria um ambiente protegido contra os monstros que estão lá fora, os nossos adversários, os nossos inimigos”.
Para ele, a ideia é manipular o medo, o desespero e a sensação de pertencimento ao mesmo tempo das pessoas. “Eu pertenço aqui e aqui eu estou protegido. Lá fora tem os estupradores, tem os pedófilos, tem os monstros, e o meu lado tem o herói que é impoluto e vai enfrentar o mal.”
Isso virou uma técnica, afirma, e é um dos motivos “para a gente estar vivendo em um nível de escala de ódio. É o domínio dessa técnica que apresenta imagens aberrantes, com fantasias delirantes”.
Para não ficar no enfoque do discurso da pastora Damares Alves (Republicanos/DF), que, em um culto evangélico, criou a imagem de crianças sendo submetidas a um preparo cruel para serem traficadas para abuso sexual, Spinelli cita um exemplo norte-americano.
“Entra um menino branco em um culto gospel numa igreja frequentada majoritariamente por negros e sai atirando em todo mundo porque os negros vão invadir a casa dele e estuprar a irmã dele”, recorda.
Segundo Spinelli, “essa fantasia de consequências trágicas foi inserida quando o cérebro desse menino estava vulnerável. Em um momento assim, pode-se dizer qualquer coisa, inserir o que você quiser inserir”.
Trata-se, conforme o psiquiatra, da criação de uma sensação de horror, de desequilíbrio do que a gente chama das regularidades do mundo, da sensação do que está entre fundamento e realidade. “Por exemplo, em um surto psicótico, essa sensação de regularidade do mundo é profundamente perturbada pelo episódio psicótico e desarticula toda a capacidade cognitiva da pessoa.”
Foto: Acervo Pessoal
Arianne Angelelli, médica psiquiatra e psicanalista
Foto: Acervo Pessoal
Em tese, não há uma corrente da psicanálise que bloqueie uma discussão política dentro de uma consulta psiquiátrica ou sessão de terapia, opina Spinelli. “Quando esse assunto sobre política entra no consultório, eu não estou evitando porque é um dado clínico de estresse importante. Hoje, é muito frequente terminar uma sessão com o paciente gritando os slogans e memes a que ele foi submetido. Que o Brasil vai virar uma Venezuela, que o outro é um canibal. Gritando mesmo! Uma espécie de pergunta: ‘Como você não percebe o que eu estou vendo?’”, descreve.
Mas, conforme ele, “o terapeuta precisa ouvir o que a subjetividade do paciente fala e não fazer um debate político; nenhum proselitismo político, nem espiritual dentro do consultório”, diz.
Para o junguiano Spinelli, o exercício do terapeuta é um exercício de compaixão e de compreensão. “Embora eu, ao receber vídeos e gráficos (memes) como os dessa campanha, me ofenda profundamente como pessoa física, não é a pessoa física que está envolvida em uma sessão. Então, se você quiser evitar, você diz ‘olha, isso é um fator de estresse importante, eu não vou entrar em um embate político com você. Eu vou discutir o efeito desse debate político no seu quadro clínico. Isso eu posso fazer. Eu não vou discutir se você está certo ou está errado. Se você está certo ou a sua irmã que não foi em um almoço para não te encontrar está certa”, discorre o médico.
A psiquiatra Arianne Angelelli segue na mesma linha. “Quando se trabalha com paciente na psicanálise, a gente está atrás das questões inconscientes, na angústia, nos sintomas do paciente. Não se está atrás das convicções políticas e muito mais do que está por trás de uma convicção política.”
Em uma situação em que se apresenta um tema caro para os bolsonaristas, o discurso do armamento da população, ela diz que, por ser psiquiatra, sabe que os dados científicos apontam para uma facilitação do aumento de suicídios.
“A literatura psiquiátrica diz isso, mas vamos supor que um paciente tenha uma situação de desamparo, uma situação de ter vivido uma violência e, por isso, ele quer muito, por exemplo, ter uma arma. Então se o paciente chega todo aguerrido com a ideia fixa de que tem que se ter facilidade para armar a população, eu vou tentar entender o que significa para ele ter uma arma. Eu trabalho ao nível do significado do que se passa com o paciente. Dentro da psicanálise, a gente não trabalha, de jeito nenhum, com julgamentos de valores.”
“Obviamente”, acentua Arianne, “se esses dados sobre a facilitação do suicídio através de mais acesso às armas me forem perguntadas, eu repasso. O problema é que estamos numa realidade que tudo acaba em embate, com pessoas aguerridas. Se você diz que é contra o armamento, logo vem o discurso ‘Ahhh, então você é a favor dos bandidos’”, compara ela.
A médica não deixa de enfatizar, no entanto, caso se depare com uma situação em que perceba que possa ocorrer um episódio de violência por um paciente enciumado, por exemplo, “talvez eu tenha que sair desse ambiente de neutralidade e dizer: ‘Olha, eu preciso falar com a sua família’”.
Sobre como sair desse clima, Spinelli diz: “Clinicamente, o que dá para fazer é o que estamos fazendo nesta entrevista. Tentar mostrar para as pessoas como funciona essa técnica de manipulação e tirar – termos cerebrais – esse reino da Ínsula e da Amígdala que são regiões que coordenam o nojo, o medo, e fazer o córtex pré-frontal voltar a funcionar e questionar”, afirma ao ressaltar: “Tem gente pesquisando e trabalhando isso”, conclui.
 
 
 
 
 
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