O sonho mora ao lado: por que tantos brasileiros saem do país para fazer Medicina? – Jornal Correio

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Desde criança, a jovem Fernanda Damasceno, 27 anos, nunca teve dúvidas de que queria ser médica. “Nunca tive um plano B”, lembra. No último dia 3, veio a concretização do sonho, na colação de grau em Medicina. “Foi emocionante, indescritível. Minha mãe veio para cá compartilhar essa conquista que é tanto minha quanto dela”. Natural de Salvador, até alguns anos atrás dificilmente Fernanda imaginaria onde viria a se formar: na Universidade Privada Del Este, na Ciudad del Este, no Paraguai. 
Assim como ela, milhares de brasileiros têm atravessado as fronteiras para fazer Medicina nos países vizinhos nos últimos anos. Se no Brasil os cursos da área são extremamente caros ou extremamente concorridos – ou, em alguns casos, as duas coisas ao mesmo tempo -, a realidade lá fora pode ser mais atrativa. Enquanto em Salvador há faculdades privadas que cobram mensalidade de R$ 12 mil, escolas médicas na América do Sul chegam a cobrar 10% disso – ou nada, nas públicas. Além do Paraguai, os países mais procurados são Argentina e Bolívia. 
“Eu não conhecia o Paraguai. Vim no primeiro dia já para ficar porque era a possibilidade que eu tinha. Queria muito que desse certo”, conta Fernanda. Quando ela chegou, em 2017, tinha passado por menos de um semestre no Bacharelado Interdisciplinar em Saúde, na Universidade Federal da Bahia (Ufba). 
O BI de Saúde, como é mais conhecido, exige notas praticamente perfeitas durante os três anos de duração, para depois novamente fazer uma seleção interna, já que as vagas não são garantidas. Não é incomum que estudantes oriundos desse bacharelado desenvolvam transtornos como depressão e ansiedade, como reportagens do CORREIO já mostraram no passado. 
Por outro lado, Fernanda conhecia uma colega que estava no Paraguai e decidiu perguntar mais sobre o processo. “Coloquei na balança se era melhor continuar naqueles três anos de Ufba, sem saber se ia conseguir. Eu não podia pagar uma faculdade (de Medicina) em Salvador. Aqui, eu podia”, explica. Assim, ela começou a pesquisar e decidiu morar na fronteira, perto de Foz do Iguaçu, justamente pela proximidade com o Brasil. 
No começo, contando a mensalidade da faculdade e todos os outros gastos de vida – do aluguel à alimentação -, ela gastava, em média, R$ 3 mil. Ao final do curso, com os reajustes de mensalidade, o saldo total ficava em torno de R$ 4,5 mil – só da faculdade, eram R$ 2,5 mil. Agora, já médica, pretende voltar para Salvador e continuar estudando para prestar a próxima prova do Revalida – o exame que valida diplomas médicos internacionais no Brasil. No início deste mês, quase dois mil graduados se submeteram à segunda fase da prova, que acontece duas vezes por ano. 
“Vou voltar para Salvador, mas não sei se vou morar aí. Quando você mora fora, começa a ver um leque de opções. Meu diploma pode ser revalidado na Espanha, por exemplo, de uma forma menos complicada que no Brasil. Do mesmo jeito que consigo revalidar aqui, consigo em qualquer lugar do mundo que tenha um processo de revalidação”, explica Fernanda. 
Público
O Paraguai desponta como um dos países preferidos também por uma forte estratégia de marketing das universidades, em especial nos últimos anos. Em redes sociais como o TikTok, não é difícil se deparar com vídeos sobre a rotina de estudos e das aulas nos cursos no país. 
Há desde estudantes compartilhando conteúdo até assessores estudantis como Renata Gomes e Silva, que atua na Universidade Maria Auxiliadora (Umax), onde ela própria se formou médica há um ano e três meses. Natural de Fortaleza, ela chegou ao país também com o objetivo de se graduar, mas teve a oportunidade de se tornar assessora estudantil na instituição.
Hoje, Renata tem uma empresa com seis pessoas. No próximo semestre, ela planeja fazer um curso preparatório para o Revalida no Brasil, mas vai continuar coordenando a empresa à distância. A demanda dos brasileiros é grande. “A gente sabe que, no nosso país, só cursa Medicina quem tem um poder aquisitivo muito alto (nas particulares). O país não acolhe nossos sonhos”, lamenta. 
A maioria dos alunos chega até ela, algo em torno de 60%, tem entre 16 e 20 anos. No entanto, há estudantes mais velhos, até na faixa dos 50 e 55 anos, incluindo os que já têm alguma graduação anterior. A busca pelos serviços ocorre principalmente para evitar a burocracia. “É muito mais fácil confiar em alguém que você pesquisou e ver que tem a experiência do que vir sozinho. Por isso as assessorias são mais buscadas. Na universidade em que trabalho, o aluno não paga pela assessoria”, explica ela, que cuida da documentação à recepção dos estudantes no aeroporto ou na rodoviária. 
Renata vê a presença das universidades nas redes sociais com naturalidade, devido à própria estratégia de marketing.
“Tem muita gente que não conhece esse caminho e essa é a forma que a gente tem de chegar até as pessoas. A população jovem toda usa, principalmente a classe média”, completa, referindo-se ao TikTok. 

O estudante Matheus Benaia, 23, faz parte da estatística dos jovens que chegaram bem jovens ao Paraguai. Ele tinha entre 17 e 18 anos quando entrou na universidade, em 2017. Segundo o estudante, justamente por ser muito novo, ele e os pais acreditaram que seria uma boa oportunidade por considerar uma via mais fácil. Ele tinha feito o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas não conseguiu alcançar a nota de corte para a Universidade Federal da Bahia (Ufba). 
“Tentei o vestibular de Medicina no Brasil, porém não passei na faculdade que queria. Pensando no sentido de ‘não perder mais tempo’ em cursinho, entrei logo na faculdade no Paraguai”. Matheus chegou a cursar alguns períodos na Umax de Assunção, mas mudou para a Universidade Central do Paraguai, na Ciudad del Este. “Tive problemas pessoais e acabei voltando para o primeiro período”, conta ele, que é de Juazeiro. 
A adaptação não foi um problema, nem mesmo com a língua espanhola. De acordo com Matheus, pela quantidade de brasileiros nas aulas, professores costumam ajudar. “Eles traduzem o que falam. Aqui, nós falamos um portunhol”. Ele diz que fazer Medicina no Paraguai é uma forma viável de cursar algo que é um sonho. 
“Porém não são só mil maravilhas. Existe a questão de você estar em um país que não é o seu. Mas, em relação ao curso, é basicamente o mesmo ensino e a qualidade do Brasil. Lógico que algumas matérias mudam, mas a questão dos assuntos universais serve pra tudo”, argumenta. 
Ainda assim, ele explica que não pretende terminar a graduação lá. Devido às dificuldades do Revalida, Matheus quer fazer uma transferência antes, mas ainda não sabe para qual faculdade. 
Segunda graduação
Nem todos, porém, tinham a Medicina como o maior sonho desde a infância. Hoje fazendo o curso na Universidade de Aquino Bolívia, em Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, Larissa Oliveira, 29, não apenas se formou em Pedagogia na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) como chegou a atuar na área por três anos. Mas quando uma amiga que planejava fazer a graduação médica a convidou para ir junto, ela acabou aceitando e lembrando de uma vontade antiga que tinha sido afastada pelos custos altos do Brasil. 
Larissa chegou ao país em 2019 com a amiga que, duas semanas depois, voltou ao Brasil por saudades da família. “É onde filho chora e mãe não vê, porque a gente vai com o objetivo maior, mas a gente amadurece. Você aprende que se não tirar a carne do congelador, você não come. Tem um idioma novo, com o desafio de aprender o idioma e depois o conteúdo. São desafios diários, mas Deus coloca pessoas que vão dar força, porque a gente vai estar longe de todo mundo”, conta. 
Ela, que nunca tinha visitado a Bolívia antes e chegou já para ficar, diz que gosta muito do país. Na faculdade, como na maioria das universidades buscadas pelos brasileiros, não havia exigência de exame de proficiência em língua espanhola (algumas exigem que os estudantes façam curso do idioma por alguns semestres). A depender do valor do dólar, a mensalidade fica entre R$ 1,1 mil e R$ 1,2 mil. Contando tudo, inclusive aluguel e alimentação, Larissa estima gastar R$ 3,7 mil por mês, mas sabe que é possível gastar menos – morar mais longe da faculdade é uma alternativa. 
Os brasileiros são presença frente na faculdade dela, que tem muitas turmas de Medicina. “O conteúdo, querendo ou não, é o mesmo. Só muda o idioma. A diferença que pega para a gente é que tem coisas específicas do Brasil, como legislação do SUS (Sistema Único de Saúde), que não tem lá. Mas, no primeiro semestre de anatomia, por exemplo, eu tive contato com um cadáver que era para a minha turma. Aqui, em muitas, você tem um cadáver para várias turmas. Então, deu para ter essa experiência mais detalhada”. 
De fato, a Bolívia foi o primeiro país a despertar esse interesse dos brasileiros. Lá, o fenômeno não é de hoje. Talvez por isso, inclusive, desde o primeiro Revalida, em 2011, a maior parte dos diplomas que se submetem à prova são bolivianos – no caso, muitos de brasileiros com diploma boliviano. “É impressionante o número de brasileiros que moram na Bolívia para fazer Medicina”, diz a professora Fernanda Rodrigues, professora do curso de Enfermagem da PUC Minas. 
Ela é a autora de uma tese de doutorado, defendida em 2015 na mesma instituição, sobre a migração desses estudantes para o país. De acordo com Fernanda, há todo tipo de realidade envolvida – pessoas mais ricas e pessoas mais pobres, que não conseguiam pagar por uma particular no Brasil ou que não conseguiam passar no vestibular de uma pública, além dos que estavam já na segunda graduação. 
Ainda assim, não há nenhuma pesquisa, até hoje, que tenha identificado a origem desse fluxo migratório. “A Bolívia é um país que o boliviano, a moeda, é muito desvalorizada em relação ao real, embora as duas dependam do dólar. Com R$ 1 mil, a pessoa tinha acesso a coisas que, aqui não teria”, diz. 
Em sua pesquisa, a professora identificou diferentes tipos de universidades, especialmente nas cidades de Cochabamba e Santa Cruz de La Sierra, que costumam ser mais visadas por brasileiros. La Paz, a capital, também tem escolas médicas, mas é menos buscada pela altitude – trata-se da capital mais alta do mundo. Em altas altitudes, a capacidade de absorver oxigênio fica reduzida.  
“As realidades das universidades, quanto à estrutura física, são muito variadas. Visitei uma fantástica em Cochabamba, a Universidade del Valle, que tinha uma estrutura que muitas no Brasil não têm. Ao mesmo tempo, fui em outra muito improvisada, pequenininha”, lembra ela, que ressalta as diferenças entre os contextos de cada país.  
Um dos pontos distintos é na titulação da equipe docente – algo que é apontado por ela e outros especialistas como uma das razões que podem elevar os custos dos cursos no Brasil. Enquanto aqui há exigências de professores mestres e doutores, não existe essa obrigatoriedade no país vizinho, segundo a pesquisadora. “Isso encarece muito o curso. Outra coisa é a inserção desses alunos no serviço, porque a Bolívia não tem serviço público de saúde universal. Eles fazem programas para esses estágios acontecerem”. 
Para a professora, há mesmo um preconceito com a formação desses profissionais no exterior. Por isso, ela defende o Revalida como um mecanismo para atestar a qualidade desses médicos, ao permitir identificar quem já está pronto e quem não estaria pronto ainda para atuar. Há alguns pontos, a exemplo da epidemiologia, que tem estudos particulares do Brasil. 
Além disso, de acordo com ela, muitos cursos de Medicina que foram abertos após o programa Mais Médicos têm uma ênfase maior na saúde pública, algo que não necessariamente estará presente na formação no exterior. Alguns desses estudantes precisam fazer algum curso à parte. Na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), que tem um processo de revalidação próprio, os aprovados precisam passar por até 3,5 mil horas de aula de estudos complementares. 
Ao mesmo tempo, Fernanda pondera que também há cursos de Medicina no Brasil que não oferecem uma formação tão boa. “O curso de Medicina virou um negócio”, diz. “Acho que esses meninos que vão para fora e voltam contribuem muito, especialmente porque, quando retornam, muitos vão para os estados de fronteira com a Bolívia, que são locais muito carentes de profissionais médicos. Se você tira esses profissionais de lá, o impacto na saúde é muito grande”, acrescenta. 
Diploma
Fisioterapeuta no Brasil, Jacqueline Mota, 32, também se formou médica na Bolívia. Ela chegou em 2014 para estudar na Unifranz, em Cochabamba, mas, antes disso, nunca havia pensado em Medicina. 
“Meu sonho, desde criancinha, era ser fisioterapeuta. Não sabia nem falar a palavra direito, mas queria. Durante a faculdade, conheci um menino que também era fisioterapeuta e estava terminando Medicina. Ele falava que eu tinha olhar clínico de médico e que eu estava me enganando. Ao mesmo tempo, era uma profissão que não estava sendo valorizada”, lembra. Como tinha concluído a primeira graduação muito cedo, aos 22, Jacqueline achou que ainda estava a tempo de correr atrás da outra graduação. 
A instituição onde ela estudou faz parte do Sistema de Acreditação Regional de Cursos de Graduação do Mercosul e Estados Associados (Arcu-Sul), uma das possibilidades que ela tinha era fazer intercâmbio no Brasil. Jacqueline escolheu fazer isso justamente durante o internato, período em que cursou em Curitiba (PR). 
Concluiu em 2019, mas, pelas normas do país, ela precisava trabalhar na Bolívia por três meses, antes de prestar o exame de grado. “Quando fui dar entrada no diploma em 2019, veio a pandemia. A gente ficou presa e passei por repatriação. Quando abriu para o exame, as fronteiras estavam fechadas, em junho de 2020. Acabei fazendo só em novembro e o diploma veio chegar aqui em 2021”, explica. 
Hoje, ela está no processo de revalidação do diploma por dois caminhos: um pelo próprio exame Revalida e outro conhecido como revalidação simplificada. Jacqueline chegou a tentar a prova este ano, depois que seus documentos chegaram em junho, mas não passou para a segunda fase. 
Já o outro processo acontece para cursos que são acreditados pelo Arcu-Sul e na lista da plataforma Carolina Bori, do Ministério da Educação, como é o caso da instituição onde ela estudou.
“Você envia seu diploma para avaliação de algumas universidades federais e estaduais. No meu caso, estou pela Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Eles vão ver se a faculdade está dentro do padrão, mas ainda tem uma fila imensa de mais de mil pessoas na minha frente. Pode demorar um ano ou mais, então, enquanto isso, vou tentar a prova”.
Apesar de satisfeita com a formação, ela costuma dizer que agora, especificamente, a Bolívia não vale tanto a pena. Pela possibilidade de estudar gratuitamente, ela tem recomendado a Argentina. “A Bolívia é um país muito tradicional e a mulher brasileira sofre muito preconceito. Até uma mulher que se depila é considerada p*ta. É um choque cultural grande porque eles são reservados, falam baixo. Eles se incomodam muito com brasileiros”. 
Os valores também mudaram. Ao chegar no país, o dólar custava R$ 2,70. Atualmente, passa de R$ 5,30. “Não tem como viver com menos de mil dólares. Por esse valor, você consegue se matricular em faculdades da região Norte ou mesmo de Goiás. Hoje, é inviável, mas eu não me arrependo de nada”. 
Planejamento
Antes de embarcar em um avião rumo a Buenos Aires, na Argentina, em fevereiro deste ano, a estudante Maria Eduarda Neri, 22, também chegou a tentar o vestibular para Medicina no Brasil por dois anos – fora o período como ‘treineira’ fazendo o Enem antes do terceiro ano do Ensino Médio para conhecer a prova. Ela chegou a ser aprovada na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, cuja mensalidade na época ficava em torno de R$ 5,8 mil – ao longo dos semestres, há reajustes. 
Só que Maria Eduarda não tinha como pagar. Foi quando ela decidiu buscar outras alternativas. “No Ensino Médio, eu tinha um certo preconceito, mas não queria ter a vida de entrar 8h da manhã no cursinho, sair 8h da noite e não conseguir lograr (a aprovação numa faculdade pública)”. 
Na época, uma conhecida estava estudando no Paraguai e Maria Eduarda começou a procurar por outras universidades. Depois da pesquisa, chegou à conclusão de que queria ir para a Argentina. Conversou com os pais que, no começo, não gostaram muito da ideia da mudança de país, mas acabaram aceitando. “Falei com empresas, fiz planejamento de orçamento e entreguei para os meus pais. Tivemos essa conversa e vimos que era isso que eu queria para a minha vida. Eu também sempre quis fazer um intercâmbio, mas o dólar está caro”, explica. 
Com o peso argentino mais atrativo – R$ 0,31 na última semana -, a mensalidade na faculdade dela, a Fundación Barceló, fica em torno de R$ 700.  Com tudo, ela estima que gasta R$ 3 mil por mês, vivendo em uma residência estudantil com quarto individual, banheiro próprio, móveis e varanda. 
Na Argentina, não existe vestibular, mas os estudantes precisam fazer o chamado ‘pré-grado’- um curso introdutório que, ao final, é preciso ser aprovado para começar a Medicina de fato. Com a pandemia, Maria Eduarda conseguiu fazer o pré-grado na forma intensiva, em quatro meses, online, ainda no Brasil, no ano passado. 
Em fevereiro, começou o primeiro ano da graduação, já presencial. “Eu sabia um pouco de espanhol do colégio e fui vendo aulas no YouTube. Quando comecei o pré-grado, me entreguei de verdade ao espanhol, ouvindo músicas e vendo filmes em espanhol. Acho que é importante saber alguma coisa, porque eles falam muito rápido, mesmo que sejam super pacientes”, acrescenta. 
Na Barceló, os professores usam o método PBL (Metodologia Baseada em Problemas, na sigla em inglês), o que obriga os estudantes a chegar nas aulas já tendo estudado por materiais disponibilizados na plataforma da instituição.
“É muito mais você por você do que o professor te explicar o assunto. Não tem aquela coisa de slide, você tem que ir atrás. É um pouco difícil se adaptar, mas quando vejo tudo, eu falo ‘é isso que eu quero’, porque tem aulas práticas desde o primeiro ano”. 
Mas nem tudo são flores. Maria Eduarda diz que já se deparou com preconceito – especialmente de brasileiros que cursam Medicina no Brasil. “Muitas páginas postam que o brasileiro veio para cá porque não tem capacidade de passar no vestibular, mas aqui você entende que a educação no Brasil é muito limitada. Eu não recomendo vir para cá para pessoas que acham que vão passar em tudo sem se esforçar, porque não é assim. Tem professores que viram para os alunos e falam: ‘o que você está fazendo aqui, se não veio estudar’? Tem gente que sofre xenofobia. Então, a maior dificuldade é você ter um psicológico bom para continuar”. 
Por isso, há quem tenha mudado os planos no meio do caminho. O estudante Everton (nome fictício), 29, acabou transferindo o curso para uma faculdade no Brasil depois de passar por três instituições na Argentina. No começo, quando chegou no fim de 2014, era para estudar na Universidade Nacional de Rosário, que é pública. Mas uma grave de cinco meses acabou sendo demais para ele, que tinha pressa. Mudou para outra particular e depois, para outra privada – a Barceló em São Tomé. 
A situação política influenciou.
“Quando eu fui, era outra realidade, outro governo. O real estava mais forte, a economia estava mais estável. Era um Brasil com negociações com outros países, a economia era outra coisa. No meio do caminho, começou a mudar. Teve a queda da presidente Dilma (Rousseff, em 2016) e mesmo a Argentina tendo um câmbio pior que o nosso, o real ficou desvalorizar”, conta ele, que ficou de 2014 a 2020 no país. 
No início, alugava um flat por R$ 800, mas saiu pagando R$ 2,5 mil no contrato. A mensalidade do primeiro semestre era R$ 540, mas chegou aos R$ 3 mil – à medida que os semestres avançam, é possível que os valores passem por reajustes. De repente, o quadro estava bem diferente do que Everton tinha imaginado. 
Com a pandemia, porém, muitas universidades particulares no Brasil tiveram provas de transferência com muito mais frequência do que antes. Assim, ele decidiu transferir para cá e, atualmente, estuda numa faculdade privada de São Paulo. “Foi preciso uma readaptação total. A Medicina é universal, mas tem questões de termo, metodologia de trabalho. O Brasil tem o SUS e doenças tropicais, então tem matérias específicas para isso e você tem que fazer”, lista. 
Para Everton, Medicina também era um sonho de criança. Ele chegou a ser aprovado no vestibular de Odontologia na cidade onde nasceu, na Bahia, e começou a cursar, porque lá não tinha o curso de Medicina. Depois de conhecer a Argentina, porém, se encantou. “Vi a universidade e achei fantástica. Era a mesma faculdade de Che Guevara, então fiquei encantado”. 
Ele prefere não se identificar com o nome verdadeiro justamente porque acredita que existe preconceito com pessoas que tiveram formação médica no exterior. “A Medicina no Brasil ainda é muito vertical. O acesso ainda é por quem já tem alguém na família que é médico. Tenho colega aqui no Brasil que, desde que começou, já acompanhava o pai, suturava, tinha todo um acesso quem não tinha”, diz. 
Exame para médicos formados no Brasil divide entidades
De forma geral, os médicos que se formam no exterior não são contrários a prestar o Revalida, se quiserem retornar ao Brasil. Na verdade, entre os ouvidos pela reportagem, era comum a ideia de ir além disso: para muitos, o ideal era que brasileiros formados aqui também passassem por uma prova como o Revalida – algo parecido com o que acontece com os bacharéis em Direito que, para se tornar advogados, precisam ser aprovados no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). 
No entanto, não há consenso sobre isso entre as principais autoridades médicas.  A posição do Conselho Federal de Medicina (CFM), é de que alguma avaliação deve ser feita, segundo o conselheiro federal Julio Braga, coordenador da Comissão de Ensino Médico do CFM e 2º vice-corregedor do Cremeb. Ele cita pesquisas que já teriam indicado que a população pensa de maneira semelhante.
“É um desejo da sociedade, dos médicos e dos políticos representantes da população”. 
Ele considera que o Revalida é um método “testado, aprovado e pouco criticado”, por ser uma prova de conhecimentos teóricos e práticos. No exame, há até simulação de atendimento ao paciente. 
Na avaliação dele, os cursos de Medicina do Brasil não destoam da realidade de outros países, quanto aos preços cobrados pelas instituições particulares. “Eles são caros no mundo inteiro. É um curso demorado, que tem uma alta taxa de tecnologia, precisa ter equipamentos, sala de aula, laboratórios”, diz. 
Para Braga, não há como baratear os cursos com essas exigências. Os que têm mensalidades mais acessíveis, em sua avaliação, podem ter fatores como centenas de alunos numa mesma sala, poucas aulas práticas e laboratórios sem recursos. 
“O brasileiro não vai para essa universidade com estrutura melhor. A maioria vai para os cursos mais baratos. Isso está refletido na taxa de aprovação do Revalida. Quem vem de cursos menores tem taxa de aprovação menor”. 
Já o diretor-presidente da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem), o epidemiologista Sandro Schreiber, explica que a entidade não vê esse caminho como o mais adequado. Para a Abem, o ideal seria fiscalizar os cursos existentes e avaliar os estudantes de maneira progressiva, durante o curso, não após a formação. 
“A ideia é que eles sejam avaliados durante o curso, até para ter tempo hábil se precisar recuperar, estudar. Isso precisa ser feito antes, tanto do ponto de vista do aluno quanto do ponto de vista do curso”, explica. 
De acordo com ele, um bom curso de graduação em Medicina precisa seguir, minimamente, alguns critérios. O primeiro deles é ter um corpo docente qualificado, tanto a nível de mestrado e doutorado quanto com a diversidade de especialidades e experiência clínica. 
“Outro critério é ter um currículo que dê conta de olhar para a medicina moderna, que veja a pessoa como um todo e não de forma segmentada. O terceiro é que haja uma estrutura de serviços de saúde em quantidade e diversidades suficientes. O ensino precisa muito que o hospital exista, mas também precisa da unidade básica de saúde, do serviço de urgência e emergência”. 
Ainda assim, ele reforça que não cabe ao Brasil avaliar cursos de graduação de fora. Assim, só resta submeter esses profissionais a uma avaliação. Para o professor, todos têm direito a conquistar sonhos e desejos. No entanto, é preciso também observar com cuidado o que está sendo ofertado. 
“Claro que há bons cursos em todos esses países, porém, esse crescimento de oferta nesses países muitas vezes tem cursos de baixa qualidade, especialmente aqueles que não oferecem um treinamento prático, que é fundamental. O Revalida nos parece um meio bastante adequado para saber se a formação foi suficiente”, completa. 

 
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