O Supremo Tribunal Federal e a regulação do aquecimento global – Consultor Jurídico
Por Gabriel Wedy
A litigância climática assumiu um papel sem precedentes no debate constitucional. Em boa hora, pois vivemos em uma geração acostumada a festejar a Carta Política de 1988, que, para além de possuir uma redação democrática, garantiu expressamente direitos constitucionais fundamentais multidimensionais e, ainda, pela riqueza de suas palavras, deixou o texto em aberto para que os hermeneutas, em uma perspectiva intergeracional, pudessem conferir-lhe apropriada interpretação e, até mesmo, [1] ampliar o rol de direitos e garantias e não permitir, evidentemente, o retrocesso dos mesmos. No artigo 102 inserto no Título IV, do Capítulo III, da Seção II, da CF, o Poder Constituinte prevê a estrutura e a competência constitucional do egrégio Supremo Tribunal Federal. Ao excelso pretório, portanto, é conferida, entre outras atribuições, a guarda da Constituição e o controle originário de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual (inciso I, alínea "a").
Neste contexto, parece evidente que caberá ao STF continuar criando os parâmetros e as definições do direito das mudanças climáticas brasileiro e aprofundando a constitucionalização do mesmo. Historicamente, aliás, o STF tem suprido com qualidade, erudição e elegância, lacunas deixadas pelos Poderes Executivo e Legislativo, que não raras vezes temem por desagradar setores da sociedade em temas polêmicos e, em última ratio, o seu próprio eleitorado, o que, igualmente, não deixa de ser compreensível no aspecto político. O aquecimento global e a sua regulação, por certo, é um destes temas sensíveis com os quais o STF já está literalmente convivendo em virtude da inércia dos políticos.
O tema das mudanças climáticas, há pouco, era tratado de forma tímida pela doutrina e, de igual modo, os litígios climáticos ainda eram incipientes. Contudo, a situação mudou, considerando, em especial, que o governo do ex-presidente Bolsonaro, com uma agenda anticientífica na área ambiental, omitiu-se no cumprimento dos compromissos assumidos para manter a estabilidade do clima. Demonstração clara desse fenômeno é o conjunto de ações em trâmite e decididas pelo STF, STJ, TRFs e TJs que evidenciam pautas atreladas direta ou indiretamente às mudanças climáticas. Portanto, pode-se observar litígios climáticos diretos (próprios ou puros) e indiretos (impróprios ou impuros) tramitando em nossas cortes.
Diretos, próprios ou puros, como já se teve a oportunidade de referir, são aqueles que em seu bojo constam pedidos diretos para o corte imediato de emissões de gases de efeito estufa, fechamento de centrais elétricas movidas pela queima do petróleo e do carvão, entre outros. Os litígios climáticos indiretos, impróprios ou impuros, por outro lado, são aqueles que envolvem a tutela direta da qualidade e quantidade da água, do solo, da qualidade do ar, da proteção da flora, da atmosfera e que, de modo indireto, ou por richochete, colaboram para a diminuição das emissões antrópicas. Nesta categoria inserem-se aquelas ações mandamentais e igualmente aquelas medidas estruturantes de políticas públicas, tendo como base jurídica, especialmente, em seu bojo, os princípios da prevenção e da precaução, que colaboram para a descarbonização da economia, para a construção de prédios sustentáveis, para edificação de proteções artificiais contra eventos climáticos extremos, para regulação da geoengenharia, para compra de carros elétricos subsidiada, para a concessão de incentivos e subsídios fiscais para as energias renováveis, para a operacionalização da tributação do carbono, entre outras.
Existe tendência que o Supremo Tribunal Federal avance de modo progressista para uma jurisprudência holística e descarbonizada em virtude de algumas medidas por este adotadas, como a criação da Pauta Verde de julgamento e, igualmente, pelo Conselho Nacional de Justiça que instituiu: a- o Prêmio Juízo Verde, criado para homenagear iniciativas voltadas à proteção do meio ambiente ou que contribuam com a produtividade do Poder Judiciário na área ambiental [2]; b- o Concurso Nacional de Decisões Interlocutórias, Sentenças e Acórdãos Ambientais [3]; c- o Grupo de Trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas do Poder Judiciário [4].
A constatação da incorporação dessa tendência de criação de uma jurisprudência sustentável no âmbito climático foi o desfecho, aliás, da ADPF 708, originariamente ajuizada como Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 60), pelo Partido dos Trabalhadores (PT), pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e pela Rede Sustentabilidade em que foram apontadas omissões do governo federal por não adotar providências para o funcionamento do Fundo Clima, que foi indevidamente paralisado em 2019 e 2020, além de diversas outras ações e omissões na área ambiental que levaram o Brasil a uma situação de retrocesso e de desproteção em matéria ambiental.
No mérito, o STF proibiu de modo exemplar, após a realização de audiência pública multidisciplinar [5], o contingenciamento das receitas que integram o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima) e determinou ao governo federal que adote as providências necessárias ao seu funcionamento, com a consequente destinação de recursos. O STF reconheceu, ainda, a omissão da União devido à não alocação integral das verbas do fundo referentes ao ano de 2019.
Para o STF, a vedação ao contingenciamento não se justifica em razão do grave contexto ambiental brasileiro, e é preciso ressaltar o dever constitucional de tutela ao meio ambiente (artigo 225 da Constituição Federal). Aliás, dados demonstrados, até por satélite, evidenciam que no ano de 2021 o desmatamento aumentou mais de 22% e alcançou uma área de 13.235 km² representando aumento de 76% no desmatamento anual em relação a 2018.
Igualmente, litígio de natureza climática paradigmático foi a ADO-59/STF, sob a relatoria da ministra Rosa Weber, em que se discutia a omissão estatal em relação ao Fundo Amazônia, criado pelo Decreto nº 6.527/2008 [6].
Dados oficiais apresentados pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) e inseridos na referida ADO, demonstravam o crescente aumento das taxas de desmatamento no bioma Amazônia nos últimos anos. A partir da captação de imagens de satélites e dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter), o Inpe apontaram para uma evolução das taxas de desmatamento entre 2013 e 2019: 2013 (5.891 km2/ano), 2014 (5.012 km2/ano) 2015 (6.207 km2/ano), 2016 (7.893 km2/ano), 2017 (6.947 km2/ano), 2018 (7.536 km2/ano) e 2019 (10.129 km2/ano). A partir de tais dados, evidenciou-se que o litígio em questão estava diretamente relacionado a uma das causas do aquecimento global, que é o desflorestamento. A relação entre o desmatamento na Amazônia e o aquecimento global, aliás, já vem bem documentada em sede doutrinária já há alguns anos [7].
O Plenário da Corte, em 3/11/2022, por maioria, conheceu da ação direta de inconstitucionalidade por omissão, rejeitando as preliminares arguidas, vencidos os ministros André Mendonça, Roberto Barroso, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, que dela conheciam como arguição de descumprimento de preceito fundamental, e o ministro Nunes Marques, que não conhecia da ação, quer como ADO quer como ADPF. Por unanimidade, converteu o julgamento da medida cautelar em julgamento definitivo do mérito. No mérito, por maioria, o tribunal julgou parcialmente procedente a ação e declarou a inconstitucionalidade do artigo 12, II, do Decreto nº 10.144/2019, e do artigo 1º do Decreto no 9.759/2019, no que se referem aos colegiados instituídos pelo Decreto no 6.527/2008; por perda superveniente de objeto, em razão do prejuízo, deixou de acolher o pedido de declaração de inconstitucionalidade do artigo 1º, CCII, do Decreto no 10.223/2020, no ponto em que extinguiu o Comitê Orientador do Fundo Amazônia, uma vez que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF 651, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, ao deferir o aditamento à inicial, declarou a inconstitucionalidade desse dispositivo legal.
Por fim, determinou à União Federal, no prazo de 60 dias, a adoção das providências administrativas necessárias para a reativação do Fundo Amazônia, nos limites de suas competências, com o formato de governança estabelecido no Decreto nº 6.527/2008. Restou vencido no julgado o ministro Nunes Marques, que julgou improcedentes os pedidos, e, em parte, o ministro André Mendonça [8].
Nas ADPF 748 e ADPF 749, o Partido dos Trabalhadores e a Rede Sustentabilidade, questionaram, dentre outros pontos, a alteração da Resolução 499/2020, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), que revogou a Resolução nº 264/1999, passando a autorizar o licenciamento ambiental [9] para a queima de resíduos sólidos em fornos de cimento nas indústrias, incluindo materiais com altíssimo potencial nocivo, como embalagens plásticas de agrotóxicos [10]. Nas demandas, argumentou-se que a queima desses resíduos poderia ocasionar desequilíbrio ambiental, afetar o clima e a saúde humana, pois o coprocessamento desses materiais emite CO2 e a queima de resíduos, principalmente embalagens de agrotóxicos, geram, além de outros gases de efeito estufa, gases extremamente tóxicos para os seres humanos, com impactos na saúde de população. Argumentou-se, também, que a liberação desses resíduos altamente tóxicos na atmosfera pode agravar o quadro já periclitante de poluição do ar em grande parte do país [11].
Nesse cenário, o Plenário do STF, em decisão unânime, declarou a inconstitucionalidade da Resolução 500/2020 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A norma havia revogado três outras resoluções do órgão: 284/2001, 302/2002 e 303/2002. Elas dispunham, respectivamente, sobre o licenciamento de empreendimentos de irrigação; os parâmetros, definições e limites de áreas de preservação permanente de reservatórios artificiais e o regime de uso do entorno; e os parâmetros para definição de áreas de preservação permanente nas áreas de dunas, manguezais e restingas nas regiões costeiras do território brasileiro [12].
As aludidas demandas evidenciam que o Brasil vem sendo palco de litígios climáticos com potencial de notável repercussão, dando ensejo a um sólido debate científico e, especialmente, constitucional, sobre tema que ganhou grande importância, notadamente, após o Acordo de Paris, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e a Encíclica Laudato Sì.
Referidas demandas demonstram, outrossim, uma gradativa sofisticação doutrinária [13] na seara dos litígios climáticos, evidenciando que a matéria, antes objeto apenas de debates acessórios (na litigância climática indireta, imprópria ou impura), começam, pouco a pouco, a chegar aos tribunais com a causa de pedir e os pedidos bem definidos (focados nas causas e nas consequências do aquecimento global e na sua regulação), forçando um posicionamento do Poder Judiciário não apenas no aspecto infraconstitucional mas, necessariamente, constitucional, que pode ser chamado de constitucionalismo climático. Nesse sentido, nos próximos anos, o egrégio STF, que tantos serviços já prestou e tem prestado à nossa República, certamente fixará os limites subjetivos e objetivos dos direitos constitucionais fundamentais debatidos nessas contendas climáticas, em especial, com uma possível declaração de um direito constitucional fundamental ao clima estável apto a tutelar não apenas as gerações atuais, mas também as gerações futuras de seres humanos e não humanos.
[1] GRAÇA, Cristina. Retrocessos ambientais e os efeitos no combate às mudanças climáticas. In: (Org.) GAIO, Alexandre. A política nacional das mudanças climáticas. Belo Horizonte, Abrampa, 2021. p. 73-90.
[2] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Prêmio Juízo Verde. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/sustentabilidade/premio-juizo-verde/. Acesso em: 20 jul. 2022.
[3] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Portaria 225 de 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/internet_docs/biblioteca/clippinglegislacao/Prt_225_2022_CNJ.pdf. Acesso em: 20 jan. 2022.
[4] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Grupo de Trabalho Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas do Poder Judiciário. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/files/original1924252021121761bce3e9e9717.pdf. Acesso em: 9 julh. 2022.
[5]BORGES; Caio; VASQUES, Pedro Henrique. STF e as mudanças climáticas: contribuições para o debate sobre o Fundo Clima (ADPF 708). Rio de Janeiro: Editora Telha, 2021.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADO nº 59/DF. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15344261377&ext=.pdf. Acesso em: 12 mar. 2021.
[7]NEPSTAD, Daniel C; et al. Interactions among Amazon land use, forests and climate: prospects for a near-term forest tipping point. The Royal Society Publishing, v. 363, n. 1498, 2008. Disponível em: https://doi.org/10.1098/rstb.2007.0036. Acesso em: 13 mar. 2021.
[8] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF determina reativação do Fundo Amazônia no prazo de 60 dias. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=496793&ori=1. Acesso em: 20/11/2022.
[9] Sobre o tema, consultar: MOREIRA, Danielle de Andrade et al. Litigância climática no Brasil: Argumentos jurídicos para a inserção da variável climática no licenciamento ambiental, 2022. Disponível em: Litigância climatica_final.pdf (puc-rio.br). Acesso em: 3/2/2022.
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias STF: STF recebe novas ações contra revogação de resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=452777. Acesso em: 14 mar. 2021.
[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias STF: STF recebe novas ações contra revogação de resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=452777. Acesso em: 14 mar. 2021.
[12]BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo 141. Disponível em: https://arquivos-trilhante-sp.s3.sa-east-1.amazonaws.com/documentos/informativos/informativo-1041-stf.pdf. Acesso em: 20 ago. 2022.
[13] GERRARD, Michael; FREEMAN, Jody; BURGER, Michael (Ed.). Global Climate Change and U.S Law. 3rd Edition. New York: American Bar Association, 2023.
Gabriel Wedy é juiz federal, membro do grupo de trabalho “Observatório do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas”, do CNJ, professor do PPG em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, pós-doutor, doutor e mestre em Direito, visiting scholar pela Columbia Law School e pela Universität Heidelberg, integrante da IUCN World Comission on Environmental Law (WCEL), diretor de Assuntos Internacionais do Instituto O Direito Por um Planeta Verde e ex-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).
Revista Consultor Jurídico, 21 de janeiro de 2023, 8h00
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