Os quilombolas venceram Bolsonaro, apesar de derrotados – Nexo Jornal

0
77

Menu
Mais recentes
Apesar de vencedores, a derrota persiste. Nossas terras ainda não foram regularizadas e tituladas. Acumular derrotas, aliás, parece ser a sina imposta por distintos governos brasileiros ao povo de Alcântara.
A eleição de Bolsonaro em 2018 prenunciava um dos momentos mais difíceis, desde a redemocratização, para o Brasil e em especial para o povo quilombola de Alcântara, no estado do Maranhão. Sabíamos que ele iria investir na tentativa de consolidar o velho projeto militar do Estado brasileiro de expulsão das nossas comunidades para expandir a base espacial sobre o nosso território ancestral.
Não deu outra: em sua primeira viagem aos Estados Unidos, em março de 2019, Bolsonaro assinou o AST (Acordo de Salvaguardas Tecnológicas) com o governo americano. O AST é um projeto antigo dos militares que representa, a bem dizer, uma resposta aos sucessivos fracassos enfrentados na gestão e na administração do programa aeroespacial brasileiro, especialmente em fazer decolar seu principal projeto, o VLS (Veículo Lançador de Satélite). Sua primeira tentativa foi engavetada pelo Congresso Nacional em 2002, quando a população o rejeitou por ocasião do plebiscito popular realizado à época.
No entanto, após o golpe de 2016, o curto governo de Michel Temer o ressuscitou e pavimentou todo o caminho de negociações para sua realização, deixando preparado para o governo Bolsonaro assinar e iniciar os trâmites necessários. Assim o fez.
Em 2019, assim que soubemos do AST, iniciamos, com vários parceiros, ampla campanha nacional e internacional de denúncia do acordo e defesa do nosso território, destacando os riscos que o AST representa para nossos quilombos, notadamente, a expulsão de nossas terras ancestrais. Ao passo que fomos duramente combatidos pelo então governo federal e defensores desse projeto, inclusive, por alguns partidos de esquerda e pelo então governador do Maranhão, Flávio Dino.
Diziam que nossas “acusações” não faziam sentido e não tinham razão, pois o acordo com os EUA não tinha por objetivo expulsar as comunidades de Alcântara e que sequer seus termos tocam na questão fundiária. À época, fomos grosseiramente chamados de mentirosos durante um evento realizado pelo governo do estado para discutir a matéria.
Ao arrepio da nossa reivindicação para o respeito de normas de proteção e defesa dos direitos das comunidades quilombolas, o AST foi aprovado em novembro de 2019, no Congresso Nacional, num cenário simbiótico em que setores da direita e da esquerda não titubearam em apoiar o projeto racista da ultradireita de entrega da Base espacial de Alcântara aos EUA, em detrimento das vidas quilombolas. Luta inglória, perdemos a batalha!
Nesse enredo, em março de 2020, no pico da pandemia de covid-19, contradizendo os argumentos de defesa do acordo, o general Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional da República, publicou a Resolução nº 11, em que estabelecia a matriz de responsabilidades no âmbito da administração federal para a expulsão das comunidades quilombolas de Alcântara. Agora não há mais dúvidas. Os reais interesses do governo brasileiro estavam escancarados e o AST saiu do biombo de onde estava, expondo todos os riscos oferecidos à comunidade pela referida parceria comercial. Riscos de morte, a bem dizer (na mais ampla acepção da palavra). Desde então, ampliamos nossa rede de apoio e defesa e procuramos incidir em diversas instâncias internacionais, sobretudo, nos EUA. Processo que contou com o apoio de uma ampla rede nacional e internacional de apoiadores.
O resultado disso foi a decisão da Comissão de Orçamento do Senado Americano, em outubro de 2021, de vetar o uso de dinheiro americano para a remoção das comunidades quilombolas de Alcântara de suas terras. Primeiro, a referida decisão significou um golpe nos planos do governo Bolsonaro, que precisou recuar diante do balde de água fria jogado pelos congressistas americanos; segundo, no acender das luzes de 2022, a denúncia das comunidades quilombolas de Alcântara, que tramitava há quase duas décadas na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, subiu para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, e agora, o Estado brasileiro será efetivamente julgado pelas violações e arbitrariedades praticadas contra os quilombolas durante a implantação e a gestão da base espacial e, espera-se, deverá ser condenado a reparar as comunidades.
Esses dois acontecimentos obrigaram o governo Bolsonaro a revogar, ainda no final de 2021, a Resolução 11, num claro gesto de recuo quanto aos planos de agilizar a expulsão dos quilombolas de suas casas e terras ainda no seu governo. Vencemos. A boiada não passou!
Felizmente, encerrou-se o governo Bolsonaro e é fato que nós, os quilombolas de Alcântara, sobrevivemos e vencemos o famigerado comando, apesar de termos sido derrotados, pois o AST foi aprovado e os lançamentos de foguetes privados na base espacial já estão sendo ensaiados, o que mantém as ameaças presentes e atualizadas. Contudo, ainda não fomos expulsos de nossas casas, o que é uma vitória.
Antes de continuar, permitam-me elucidar alguns fatos.
Apesar de vencedores, a derrota persiste. Nossas terras ainda não foram regularizadas e tituladas. Acumular derrotas, aliás, parece ser a sina imposta por distintos governos brasileiros ao povo de Alcântara
Há quase meio século, nossas vidas são militarizadas pela Aeronáutica, que todo esse tempo vem, despudoradamente, violando vários direitos e garantias fundamentais dessas comunidades, colocando sua situação em permanente estado de sobrevida e, especialmente, seus direitos territoriais em estado de permanente suspensão. Alcântara, o lugar dos quilombolas, foi transformada numa espécie de não-lugar, haja vista a histórica insegurança jurídica sobreposta.
Expulsar as comunidades e se fixar em todo o litoral do município sempre foi o projeto do Estado brasileiro, levado a cabo pela ditadura militar desde 1980, e jamais rompido pelos governos seguintes, a despeito da redemocratização e da Constituição Federal de 1988.
De modo que, “sobrevivemos” à própria ditadura militar e aos governos: Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula, Dilma, Temer, e agora, Bolsonaro. Nenhum desses governos abandonaram o projeto militar de expulsão das comunidades quilombolas de suas terras. Em outras palavras, se considerarmos o aspecto da deliberada negativa de propriedade coletiva dessas comunidades, pode-se afirmar que governos de diferentes matizes ideológicas e partidárias, isto é, a ditadura militar, a direita, a esquerda e a ultradireita, reservaram para Alcântara o mesmo trato institucional: a desumanização e o abandono como projeto de Estado. Nenhum desses governos quis resolver a vida das comunidades quilombolas de Alcântara. Na prática, todos optaram por se posicionar ao lado do projeto dos militares, dado que este nunca foi rompido institucionalmente. Nesse caso, a ditadura militar não conheceu a transição democrática.
O que se vê é uma espécie de cálculo racial baseado numa aritmética política traçada pelos militares, ainda na ditadura, cujo resultado é a constante subtração dos direitos e da dignidade humana dessas comunidades.
Pois bem, voltemos.
O alvissareiro momento político brasileiro provocado pela retomada do poder pelo presidente Lula oferece uma nova chance ao mandatário de apresentar uma solução digna às comunidades quilombolas de Alcântara, ou seja, titular o território coletivo dessas comunidades nos termos do relatório técnico de identificação e delimitação, publicado no Diária Oficial da União em 2008, que, naquela época, não foi feito porque o então presidente sucumbiu ao projeto dos militares e decidiu por perpetuar a tragédia quilombola.
A eleição de Lula em 2022 também nos deixa feliz, mas o histórico em relação a nós, aciona-nos o ceticismo, razão pela qual, mesmo contentes, não nos cabe ainda comemorar. Eis que um dos grandes desafios do presidente Lula é titular o território quilombola de Alcântara na sua inteireza e plenitude! Preciso dizer que fico particularmente sisudo ao ver que uma das pastas importantes e diretamente relacionadas à Alcântara, ciência e tecnologia, esteja sob o comando do PCdoB, partido que durante a tramitação do AST no congresso nacional atuou fortemente para violar os direitos territoriais das comunidades quilombolas. Isso não nos é um bom aceno, mas ainda é precipitado para qualquer avaliação.
A solução de Alcântara, em consonância com a demanda da comunidade, é tarefa que se impõe inadiável. Se assim não o fizer, será mais uma peça política do inventário da tragédia na qual estamos imersos desde a ditadura militar, legando-nos, mais uma vez, à derrota como destino, tal qual fizeram os governos anteriores.
Com a devida licença poética, “o tempo não para e, no entanto, ele nunca envelhece”. A condição de não envelhecimento na poesia de Caetano Veloso oferece ao “agoramente” presidente Lula a oportunidade de reparar seus erros em relação à Alcântara. É como se o tempo, que não é linear e sim um processo composto de ciclos e momentos, tivesse lhe oportunizando, mais uma vez, as condições de fazer justiça e reparar o passado! E é o que se espera de quem possui toda uma vida dedicada à defesa da democracia.
Importante destacar também que em reunião com lideranças do movimento negro ocorrida durante a COP27 no Egito, Lula se comprometeu em titular territórios quilombolas, e disse: “Se a gente não fizer agora com rapidez o reconhecimento dos quilombos brasileiros, o processo demora muito. A burocracia não permite que as coisas que parecem fáceis, sejam fáceis”. Em seguida, arremata o presidente: “eu voltei com a disposição de fazer o que eu não fiz da outra vez, fazer mais e com mais competência e mais qualidade”. De fato, é necessário que a vontade e a coragem política se sobreponham à alegada burocracia, e a promessa constitucional de titulação das terras quilombolas seja cumprida. É o que se espera.
É chegada a hora de romper com o projeto dos militares. É o momento de se fazer a efetiva transição democrática e respeitar a Constituição Federal de 1988 para titular nosso território ancestral. Somos o município brasileiro que abriga uma das maiores, senão, a maior população quilombola do país. Somos, portanto, patrimônio material e imaterial da diáspora e da cultura negra brasileira. Sofrimentos, tragédias e derrotas não podem determinar nossa trajetória e destino.
Alcântara merece mais: merece respeito, reparação, terra e território; merece dignidade, cidadania e justiça!

Danilo Serejo é quilombola de Alcântara, no Maranhão, cientista político e pesquisador.
Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal e não representam as ideias ou opiniões do Nexo. O Nexo Ensaio é um espaço que tem como objetivo garantir a pluralidade do debate sobre temas relevantes para a agenda pública nacional e internacional. Para participar, entre em contato por meio de ensaio@nexojornal.com.br informando seu nome, telefone e email.

Todos os conteúdos publicados no Nexo têm assinatura de seus autores. Para saber mais sobre eles e o processo de edição dos conteúdos do jornal, consulte as páginas Nossa equipe e Padrões editoriais. Percebeu um erro no conteúdo? Entre em contato. O Nexo faz parte do Trust Project.
Assine nexo
Faça login
Assine nexo + NYT
© 2023 Nexo Jornal, Todos os direitos reservados

source

Leave a reply