Os vírus dormentes que aguardam 'sinal' para matar hospedeiro – BBC News Brasil

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Crédito, Getty Images
Os fagos podem sentir danos no DNA bacteriano, o que os leva a se replicar e 'abandonar o navio'
Após mais de dois anos de pandemia de covid-19, você pode imaginar um vírus como uma esfera com espinhos desagradável — um assassino irracional que entra em uma célula e sequestra seu maquinário para criar um zilhão de cópias de si mesmo antes de atacar.
Para muitos vírus, incluindo o coronavírus que causa a covid-19, o epíteto de "assassino irracional" é essencialmente verdadeiro.
Mas há mais na biologia do vírus do que parece.
Vejamos o HIV, o vírus que causa a Aids. O HIV é um retrovírus que não inicia diretamente uma matança quando entra em uma célula.
Em vez disso, ele se integra aos seus cromossomos e fica lá, esperando o momento certo para mandar a célula fazer cópias dele e começar a infectar outras células do sistema imunológico e, por fim, causar a Aids.
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O momento exato pelo qual o HIV está esperando ainda é uma área importante de estudo.
Mas pesquisas sobre outros vírus sugerem há muito tempo que estes patógenos podem ser bastante "ponderados" em relação a matar.
É claro que os vírus não podem pensar da maneira que você e eu pensamos. Mas, pelo visto, a evolução os dotou de alguns mecanismos de tomada de decisão bastante elaborados.
Alguns vírus, por exemplo, vão optar por abandonar a célula em que residem se detectarem danos no DNA. Nem sequer os vírus, ao que parece, gostam de ficar em um navio afundando.
Meu laboratório estuda a biologia molecular de bacteriófagos, ou fagos, os vírus que infectam bactérias, há mais de duas décadas.
Recentemente, meus colegas e eu mostramos que os fagos são capazes de ouvir importantes sinais celulares para ajudá-los nas tomadas de decisão.
E, pior ainda, podem usar os "ouvidos" da própria célula para escutar por eles.
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Se o inimigo do seu inimigo é seu amigo, os fagos são certamente seus amigos.
Os fagos controlam as populações bacterianas na natureza, e os médicos estão recorrendo a eles cada vez mais para tratar infecções bacterianas que não respondem a antibióticos.
O fago mais bem estudado, o lambda, funciona um pouco como o HIV.
Ao entrar na célula bacteriana, o lambda decide se vai se replicar e matar a célula de cara, como a maioria dos vírus faz, ou se vai se integrar ao cromossomo da célula, como o HIV faz.
Se optar pelo último, o lambda se replica inofensivamente no hospedeiro cada vez que a bactéria se divide.
Mas, como o HIV, o lambda não está apenas ocioso. Ele usa uma proteína especial chamada CI como um estetoscópio para ouvir sinais de danos ao DNA dentro da célula bacteriana.
Se o DNA da bactéria for comprometido, é uma má notícia para o fago lambda aninhado dentro dela.
O DNA danificado leva direto ao aterro sanitário da evolução, porque é inútil para o fago que precisa dele para se reproduzir.
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Nem todos os vírus agem como o coronavírus causador da covid-19
Então o lambda ativa seus genes de replicação, faz cópias de si mesmo e sai da célula para procurar outras células não danificadas para infectar.
Alguns fagos, em vez de coletar informações com suas próprias proteínas, grampeiam o sensor de danos ao DNA da própria célula infectada: LexA.
Proteínas como CI e LexA são fatores de transcrição que ativam e desativam genes ligando padrões genéticos específicos dentro do manual de instruções do DNA que é o cromossomo.
Alguns fagos como o Coliphage 186 descobriram que não precisam de sua própria proteína viral CI se tiverem uma sequência curta de DNA em seus cromossomos à qual a LexA bacteriana pode se ligar.
Ao detectar danos no DNA, a LexA vai ativar os genes do fago para "replicar e matar", essencialmente enganando a célula para cometer suicídio enquanto permite que o fago escape.
Os cientistas reportaram pela primeira vez o papel da CI nas tomadas de decisão dos fagos na década de 1980 — e o truque de contraespionagem da Coliphage 186 no final da década de 1990.
Desde então, houve algumas outras descobertas de fagos grampeando sistemas de comunicação bacteriana.
Um exemplo é o fago phi29, que explora o fator de transcrição de seu hospedeiro para detectar quando a bactéria está se preparando para gerar um esporo, ou uma espécie de ovo bacteriano capaz de sobreviver a ambientes extremos.
O phi29 instrui a célula a acondicionar seu DNA no esporo, matando as bactérias em desenvolvimento uma vez que o esporo germina.
Em nossa pesquisa publicada recentemente, meus colegas e eu mostramos que vários grupos de fagos desenvolveram de forma independente a capacidade de acessar outro sistema de comunicação bacteriano: a proteína CtrA.
A CtrA integra vários sinais internos e externos para acionar diferentes processos de desenvolvimento nas bactérias.
A principal delas é a produção de apêndices bacterianos, chamados flagelos e pili. Acontece que esses fagos se ligam aos pili e flagelos das bactérias para infectá-los.
Nossa hipótese principal é que os fagos usam a CtrA para estimar quando haverá bactérias suficientes nas proximidades de pili e flagelos que possam prontamente infectar. Um truque bastante inteligente para um "assassino irracional".
Estes não são os únicos fagos que tomam decisões elaboradas — e tudo isso sem a vantagem de ter um cérebro.
Alguns fagos que infectam bactérias Bacillus produzem uma pequena molécula cada vez que infectam uma célula.
Os fagos podem sentir esta molécula e usá-la para contar o número de infecções de fagos que ocorrem ao seu redor.
Como invasores alienígenas, esta contagem ajuda a decidir quando eles devem ativar seus genes para "replicar e matar", matando apenas quando os hospedeiros são relativamente abundantes.
Desta forma, os fagos se certificam de que nunca vão ficar sem hospedeiros para infectar — e garantem sua própria sobrevivência a longo prazo.
Você pode estar se perguntando por que deveria se preocupar com as operações de contrainteligência executadas por vírus bacterianos.
Embora as bactérias sejam muito diferentes das pessoas, os vírus que as infectam não são tão diferentes dos vírus que infectam os humanos.
Praticamente todos os truques executados por fagos foram observados mais tarde sendo usados ​​por vírus humanos.
Se um fago pode grampear linhas de comunicação bacterianas, por que um vírus humano não grampearia as suas?
Até agora, os pesquisadores não sabem o que os vírus humanos poderiam estar ouvindo se grampearem estas linhas, mas muitas opções vêm à mente.
Acredito que, assim como os fagos, os vírus humanos poderiam potencialmente ser capazes de contar seu número para criar estratégias, detectar o crescimento celular e a formação de tecidos e até mesmo monitorar as respostas imunes.
Por enquanto, estas possibilidades são apenas especulações, mas a investigação científica está em andamento.
Ter vírus ouvindo as conversas privadas de suas células não soa muito bem, mas não deixa de ter um lado bom.
Como as agências de inteligência ao redor do mundo sabem muito bem, a contrainteligência funciona apenas quando é secreta.
Uma vez detectado, o sistema pode facilmente ser explorado para plantar notícias falsas para o inimigo.
Da mesma forma, acredito que futuras terapias antivirais podem ser capazes de combinar artilharia convencional, como antivirais que impedem a replicação viral, com truques de guerra de informação, como fazer o vírus acreditar que a célula em que está pertence a um tecido diferente.
Mas, fique na sua, não conte a ninguém. Os vírus podem estar ouvindo!
Ivan Erill é professor associado de ciências biológicas na Universidade de Maryland, condado de Baltimore, nos EUA.
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas The Conversation e republicado aqui sob uma licença Creative Commons. Leia aqui a versão original (em inglês).
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