Pela primeira vez ministros do STF se reúnem fora do Tribunal para debater problemas e soluções da democracia – ISTOÉ

0
65

LUZ Barroso, Moraes e Lewandowski, dentre demais magistrados à mesa, aplaudem a fala de Temer: respeito à “autoridade primária” (Crédito: Vanessa Carvalho)
CARLOS JOSÉ MARQUESi CARLOS JOSÉ MARQUES – https://istoe.com.br/autor/carlos-jose-marques/
18/11/2022 – 9:30
Institucionalidade. Essa palavra tem um valor especial, notadamente em períodos belicosos recentes, como foram os que o Brasil atravessou. Nesse momento pós-eleição, sem o risco do extremismo totalitário que era trazido pelo mandatário da vez, o País passa a respirar novos ares e até os guardiões dessa bendita e almejada harmonia de poderes em prol do povo percebem o clima desanuviado. Muitos deles, a quase totalidade do colegiado do STF que dá esteio à Carta Magna, participaram, pela primeira vez fora do tribunal, de um robusto debate para traçar caminhos nesse alvorecer político. Eram ao menos sete magistrados do Supremo, além de seu ex-presidente Carlos Ayres Britto, e do ex-presidente da República, o também jurista constitucionalista, Michel Temer, numa espécie de quase sessão privada da Corte para deleite de uma plateia representativa do PIB e com mais de 250 integrantes que correram à Big Apple para ter acesso a tamanho privilégio.
Imagine agora o que pode ter resultado de tal encontro que primou pela troca aberta de idéias. Herói da lei, e assim considerado depois de travar uma das mais épicas batalhas contra os abusos promovidos pelo capitão-mandatário, o magistrado Alexandre de Moraes, presidente do TSE e árbitro que garantiu a inexcedível lisura do processo de transição do poder, deu início aos trabalhos — e ao tom das conversas. Nem poderia ser diferente. Foi ele quem nos dias de clímax que antecederam o grande momento das urnas teve de articular uma espécie de cordão de isolamento e reforço da Lei, junto a seus pares e até com autoridades externas para garantir a sustentação da democracia. Personagem imprescindível para o cumprimento das regras, Moraes foi taxativo: “tentam de toda forma, com a desinformação e os discursos de ódio nas redes, corroer a democracia”. Ele está convencido de que somente normas muito rígidas de controle desses fenômenos serão capazes de freá-los. As redes, conforme alega, não podem funcionar como se fossem terra de ninguém com as milícias operando impunemente sem resposta.
Decerto, como colocou, está fixado nos seguintes pilares o movimento para ferir as liberdades. O primeiro deles trata de desacreditar a imprensa tradicional, que “tem responsabilidade, respeitabilidade e nome”, sempre ciente de seus atos e, portanto, rigorosamente adepta da verdade factual. Depois vem a afronta ao instrumento democrático e republicano do voto. No País, as urnas eletrônicas foram sistematicamente alvo de uma campanha de descrença, logo elas que possibilitaram ao Brasil ser a única democracia do mundo que proclamou o resultado de eleições para presidente e vice em apenas duas horas, com confiança e legitimidade. As falanges partidárias radicais pretendem substituir o sistema, é claro, devido à eficiência demonstrada. Essa articulação das milícias digitais e a confusão sobre o que é realmente liberdade de comunicação têm por meta, como registrou Moraes, minar o Poder Judiciário — em alguns países onde a algo semelhante assistiu-se, vindo direto do poder central, o Judiciário foi cooptado por meio de alterações em sua composição ou pelo seu enfraquecimento como força moderadora. No Brasil, o STF tem sido um agente eficaz contra o aviltamento das regras. “A nossa bandeira é a Constituição e o Estado de Direito para todos”, disse ele no evento realizado pelo LIDE no Harvard Club, enquanto uma azáfama de radicais se fazia ouvir do lado de fora.
Antes do magistrado, Temer, que sempre atuou como um emissário da conciliação, até mesmo quando presidiu por duas vezes a Câmara dos Deputados, tocou na palavra-chave: conciliação. Pregou fortemente a harmonia dos poderes e sugeriu que os dois presidentes – o eleito e o atual em exercício – fossem os primeiros a tomar a iniciativa nesse aspecto. “Ambos poderiam lançar palavras como colaboração e reconstrução”, apontou o ex-presidente. Para Temer, autoridades constituídas têm obrigatoriamente de prestar bons serviços ao que ele denomina de “autoridade primária”, ou seja, o povo, que as colocou ali. “A palavra povo está no texto constitucional e desobedecer a Carta é violar a autoridade primária que é o povo”. Diante de um espectro da ameaça que rondou o País, ele alertou que a ideia do autoritarismo tem por fundamento a geração de instabilidade para reinar absoluta. Com tal conceituação concorda o ministro do STF Luís Roberto Barroso, e, na conferência do LIDE, ele sentenciou: “A eleição já terminou e o povo se pronunciou. O resto é intolerância, quando não, selvageria. Uma causa que precisa do ódio e da desinformação não pode ser uma causa boa”.
São históricas e conhecidas em boa parte as etapas de evolução do populismo autoritário. Aconteceu diversas vezes em outras ocasiões e em inúmeras nações. Ele começa pela divisão da sociedade em dois pontos antagônicos e, por conseguinte, inimigos entre si. A criação dessas forças opositoras não carece, necessariamente, de estar fincada na realidade, ou seja, basta o clima de animosidade, a ventilação da ideia de que existe, sim, um inimigo a ser abatido. Seguem-se discursos anticonstitucionais, o desmonte da credibilidade de autoridades constituídas, que não a do mando central, e a martelação de princípios antipluralistas do tipo “só nós representamos o povo”. O ataque ao Judiciário – e seus representantes no seminário foram unânimes em ressaltar – está no bojo desse ardil porque, muitas vezes, o líder majoritário (no caso, o presidente da República) e alguns agentes da elite social e política não aceitam que as Leis limitem suas atuações e, então, tensionam para que magistrados sejam vistos como opositores. Barroso diz que não passa de lenda a crítica que reza que o Supremo exerce ativismo e é contrário a esse ou a aquele viés ideológico ou partidário: “Os presidentes Lula, Dilma, todos tinham queixas contra a atuação do Judiciário, mas nenhum deles atacou a Corte e tentou desmontá-la, como buscaram agora”. Na avaliação do ministro, nos últimos tempos o Judiciário foi incitado ao protagonismo, e isso acabou sendo erroneamente confundido com ativismo devido à alta judicialização que se estabeleceu por aqui. “O Supremo teve muita visibilidade não porque quis, mas devido às demandas”.
A conferência do LIDE não se prestou apenas a analisar o quadro mais agudo de ameaças à institucionalidade pelas quais passou o Brasil. Saídas também foram tratadas. Existe unanimidade sobre a conclusão de que será preciso construir, daqui para frente, uma agenda de consenso, e nela está incluída o combate à fome e à miséria crônica, diante da inaceitável realidade de mais de 33 milhões de pessoas, nesse momento, vivendo em insegurança alimentar. A prioridade na Educação como força motriz para a retomada do desenvolvimento, em especial a educação básica sem essas lorotas de “escola sem partido” que lograram espaço nos últimos tempos. O resgate dos investimentos em tecnologia e inovação após o longo interregno de cortes sistemáticos de verbas para a Ciência, massacrando a vital economia do conhecimento. E, finalmente, a projeção do empreendedorismo e da livre iniciativa como forças motrizes da retomada, sem preconceitos de qualquer natureza à sua atividade.
Os magistrados e demais participantes que deram essa verdadeira aula de bons caminhos para uma atenta plateia de representantes do setor produtivo ensejaram a proposta de um “pacto da integridade”, que começaria, no setor público, pelo fundamento de não desviar dinheiro do Estado; e, no campo privado, pelo conceito de não passar os outros para trás. Ambas as premissas terão de estar lastreadas no acordo de sempre se evitar a mentira, mal maior dos novos tempos. “Mentir precisa voltar a ser errado de novo”, bradou Barroso entre aplausos. Os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes, também presentes, ressaltaram que não tem sido fácil a vida de magistrados no Brasil. Para Toffoli, ainda não há no horizonte perspectiva de quando as coisas irão se acalmar, devido à prevalência da disputa de narrativas. Gilmar Mendes, na mesma linha, avalia que, apesar dos 34 anos de Constituição, poucas vezes se viu o uso do expediente do ódio, como agora, tentando esfarelar o mantra de que as instituições estão funcionando e assim devem continuar. “Setores da sociedade parecem possuir problemas de ordem cognitiva e levam à necessidade de respostas claras. Lunáticos pedem a intervenção militar e a volta do inventor da tomada de três pinos”, ironizou ele.
Abrir bandeiras novas que diminuam as assimetrias sociais e regionais e buscar o diálogo republicano são apelos que encontram forte defesa entre os ministros do STF. Ricardo Lewandowski, por exemplo, diz que todos os agentes precisam se unir e sistematizar a prática do entendimento aberto e legítimo, afiados à “Constituição Cidadã”, assim exaltada quando de sua promulgação, em 1988, pelo então presidente da Assembléia Nacional Constituinte, deputado federal Ulysses Guimarães. Um dos feitores dessa Carta, Ayres Britto citou o poeta português Fernando Pessoa para tratar das más interpretações das quais, costumeiramente, ela é vítima, à mercê que está do certo ou errado formulado pela cognição de cada indivíduo: “O universo não é uma ideia minha. A ideia que tenho do universo é que é uma ideia minha”. Para Ayres Britto, a Constituição representa a identidade jurídica do País: “Ela é plasma, fundamenta a democracia. É o princípio dos princípios, o princípio continente da democracia, que tem nela todo o seu envoltório”. Graças à Constituição e a esses personagens que resistiram aos ataques que ela sofreu, o Brasil conseguiu superar uma tenebrosa e triste fase de sua história.
Copyright © 2021 – Editora Três
Todos os direitos reservados.
Nota de esclarecimento A Três Comércio de Publicaçõs Ltda. (EDITORA TRÊS) vem informar aos seus consumidores que não realiza cobranças por telefone e que também não oferece cancelamento do contrato de assinatura de revistas mediante o pagamento de qualquer valor. Tampouco autoriza terceiros a fazê-lo. A Editora Três é vítima e não se responsabiliza por tais mensagens e cobranças, informando aos seus clientes que todas as medidas cabíveis foram tomadas, inclusive criminais, para apuração das responsabilidades.

source

Leave a reply