Peru: o labirinto da corrupção, da ineficácia e da informalidade – Expresso

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Internacional
Dina Boluarte
sebastian castaneda/reuters
22 dezembro 2022 17:24
No passado domingo o Peru encontrava-se em estado de emergência, com o exército nas ruas e nas estradas, a procurar restabelecer uma ordem que voou pelos ares com uma reclamação de antecipação imediata das eleições pela população. Foram especialmente graves os confrontos em Ayacucho entre soldados armados com espingardas de assalto e manifestantes, dos quais resultaram nove mortos e 29 hospitalizados. Sexta-feira passada o Congresso rejeitou o texto alternativo para antecipar eleições, com 49 votos a favor, 33 contra e 25 abstenções.
Nesta data, a chefe de Estado propôs-se “explicar a todo o Peru porque é que Dina Boluarte assumiu a Presidência da República”. Fê-lo rodeada pelos seus ministros, numa intervenção que girou em torno da ideia de que toda a responsabilidade pelo sucedido é de grupos violentos e conflituosos; que o país passa por momentos críticos no que respeita à falta de água para cultivos e para a criação de gado; que há deficiente educação e falta de serviços de internet para os estudantes; paralisação das obras do norte; défice de importações de ureia; e, como se se tratasse da apresentação de um programa de Governo, Boluarte comprometeu-se a abordar todos os problemas que ameaçam o país.
Depois dela, três generais, dois do exército e um da polícia, tomaram o microfone, apesar da presença dos ministros da Defesa e do Interior. Gómez la Torre, chefe do Comando Conjunto, resumiu a situação: “Peruanos maus, muito maus, tentaram gerar o caos no nosso querido Peru”. falou da destruição de infraestruturas críticas “das quais depende o nosso bem-estar.”
O bem-estar é um dos grandes ausentes do Peru, o principal para grande parte da população, que se encontra à margem dos processos de desenvolvimento por ter nascido numa ou noutra parte do país. As estatísticas ajudam a visionar a situação muito díspar em que vivem os peruanos. Em 2021 os sectores pertencentes às classes sociais D e E (rendimentos mensais de 2038 e 1242 soles, respetivamente 506 e 308 euros) somavam 61,5% da população, face a 1% do nível A.
A fissura cresce se considerarmos, por exemplo, a região de Apurímac, uma das primeiras a erguer-se, dia 11, contra o encarceramento do ex-presidente Pedro Castillo, deixando dois jovens falecidos, um deles com 15 anos. O paradoxo é que nesta região se encontra a mina de Las Bambas, que proporciona 15% do cobre exportado pelo Peru (em direção à China). Essa riqueza, longe de beneficiar a população, não fez mais do que incrementar os conflitos sociais, devido ao empobrecimento que a mineração significa para a população ao prejudicar a atividade agrícola por causa da contaminação dos solos.
As Nações Unidas apresentaram um relatório sobre o Peru a 17 de novembro. Nele se afirmava que “atualmente, cerca 16,6 milhões de pessoas, mais de metade da população, não tem acesso regular a alimentos suficientes, seguros e nutritivos […] apesar de o Banco Mundial classificar este país como uma economia de rendimentos médios-altos capaz de produzir todos os alimentos de que necessita.” A organização da ONU para a Agricultura e Alimentação (FAO) aponta que a má gestão do Governo, os maus hábitos alimentares e a excessiva dependência dos alimentos básicos e dos fertilizantes importados são razões adicionais para o défice alimentício no país.
Mais números: só 15% dos inquiridos na sondagem ENADES (Inquérito Nacional de Perceção de Desigualdades) afirmam dispor de rendimentos suficientes; 32% têm dificuldades, 15% grandes dificuldades. Acresce que 83% consideram o acesso à justiça muito desigual; 70% dizem o mesmo sobre o acesso à saúde; 59% à educação e 59% ao trabalho.
Estes valores não são obra de Castillo, da covid ou da crise de combustíveis que a guerra na Ucrânia suscitou. Essas circunstâncias fazem-se notar na economia, mas não impediram que os últimos dados de crescimento económico e balança do comércio externo apresentassem resultados mais do que positivos. Se fosse preciso explicar em dois parágrafos como é possível esta desigualdade entre a macroeconomia e as economias familiares, haveria que ir buscá-las em três aspetos: corrupção, ineficácia do estado e informalidade.
A corrupção política é notória. Em 2017, nove ex-governantes estavam sentenciados na prisão e outros cinco a ser investigados, quatro deles em prisão preventiva. Entre governos regionais, municipais, provinciais e distritais o número de funcionários presos era de 17.328, segundo o procurador anticorrupção Amado Enco. Nas eleições regionais e municipais do presente ano, 89 candidatos a governador faziam-no com cadastro penal por corrupção e mais de 150 autarcas e governadores com antecedentes de violência familiar. Os esforços do Estado para descentralizar competências, com criação de novas regiões e aumento de orçamentos (de 17 mil milhões de soles em 2007 para 36 mil milhões em 2017, ou seja, 4226 para 8950 milhões de euros), parece não servido apenas para pôr uma grande maquia à disposição de gente sem escrúpulos.
Além dos que procuram entrar na política para roubar, há que falar da ineficácia das administrações públicas, sobredimensionadas pela presença de trabalhadores cujos cargos servem de pagamento por apoios eleitorais, impreparados, desconfiados e com rigidez exacerbada para com o cidadão e entre si. A execução da despesa pública é um bom indicador da falta de eficiência do Estado nos diferentes níveis de administração; a média total é de 78,9% da despesa anual (dados do Ministério da Economia e Finanças), que desce para 65,1% em regiões como Arequipa, uma das que foram palco de maiores protestos, baixa para 54,3% nos seus municípios.
Esta rigidez tem consequências fatais para quem deseja aceder à economia formal. Estima-se que cerca de 73% da população ativa (PEA, na sigla local) seja informal, em média. Indo ao pormenor encontramos cerca de 80% no sector dos transportes, 86% nos restaurantes e alojamentos e 97% no agropecuário. O Banco Central da Reserva informou que as exportações agropecuárias acumularam um valor de 6675 milhões de dólares (6303 milhões de euros) entre janeiro e outubro de 2022, um crescimento de 8,4% face ao mesmo período de 2021. Esse crescimento faz-se com cerca de 97% de trabalhadores informais.
O professor David Gutiérrez, da Universidade Nacional Mayor San Marcos, estabelece que a diferença de eficiência entre empresas formais e informais é de quatro vezes. Por mais planos governamentais de formalização que se adotem, a regularização de empresas e trabalhadores torna-se quase impossível por serem quatro vezes mais ineficientes, sem acesso à formação ou à aprendizagem técnica, sem benefícios legais para os trabalhadores, e sem acesso a crédito.
Uma norma não escrita diz que espaços não ocupados pelo estado são ocupados pela máfia. No caso da informalidade isso faz-se de duas maneiras: microcréditos para a modalidade do gota a gota (empréstimos a 20% de juros diários, dominados por colombianos, muitos deles antigos guerrilheiros das FARC) e cobrança de subornos, extorsões a comerciantes e profissionais para lhes permitir que exerçam atividade.
Um dos maiores exemplos da ineficácia do Estado e do desenvolvimento desta através da informalidade é a habitação. À falta de programa nacional e de planos urbanísticos nas cidades, o crescimento faz-se por surtos de invasões. Estas são programadas por grupos especializados que ocupam espaços sem importar que sejam baldios, privados, estatais ou de valor arqueológico (veja-se o caso do recinto de Caral e da arqueóloga Ruth Shady, ameaçada de morte pelos invasores). Apoiadas por presidentes de Câmara, constituem-se como assentamentos onde quem vive já não são os invasores originais, pois estes venderam o seu lote e vão invadir novas terras. Boluarte anunciava no passado dia 18 que pensava dirigir-se ao Bairro Chinês, um dos pontos em que tinham cortado a estrada Panamericana Sul, para dar posse aos seus moradores. Como é possível?
Algo não funciona, e não são apenas os peruanos “maus, muito maus”. É pertinente recordar as mobilizações de agricultores em Iça, em dezembro de 2020, quando se soube que estavam a cortar as estradas não por maldade, mas porque lhes pagavam 39,19 soles (9,75 euros) por dia. Recordemos os dados citados acima: as exportações agropecuárias acumularam 6675 milhões de dólares entre janeiro e outubro de 2022, pagando 70 soles (17,4 euros) por dia aos trabalhadores depois desses protestos.
A nova Presidente atirou a batata-quente para o Congresso, para que se reúna e aprove uma convocatória de eleições. A exigência de parte da população e dos deputados para que se elabore uma nova Constituição em simultâneo com a ida às urnas, e a finalização do prazo de exploração de lotes mineiros e petrolíferos que hão de ser renovados, com tudo o que significa, faz com que o Congresso não esteja disposto a apressar-se. Além disso, a acusação mútua entre Congresso e Presidência de quererem aferrar-se o máximo aos seus assentos, bem como a militarização do conflito, não pressagiam solução imediata nem simples.
Um assessor político poderia sugerir ao atual Executivo — Alberto Otárola, empossado quarta-feira, é o terceiro primeiro-ministro no último mês e o segundo da presidência de Boluarte —, ao seu estado-maior e aos seus apoios internacionais que a Presidente se apresente diante do Congresso com uma moção de confiança Incluindo no seu programa a convocação imediata de eleições, poderá ver se o Congresso lhe dá confiança e se deseja chamar o povo a votar.
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