Pirataria, mais uma ferida que desagua na corrupção – politica.estadao.com.br

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Katia Braga de Magalhães*
28 de novembro de 2022 | 05h00
Katia Braga de Magalhães. FOTO: INAC/DIVULGAÇÃO
Tema que nem de longe tem merecido a devida atenção, seja no âmbito da opinião pública, dos Tribunais, do Congresso ou dos sucessivos Governos, é a disseminação, entre nós, da pirataria, responsável por prejuízos da ordem de centenas de bilhões de Reais para a economia, e que representa um significativo obstáculo ao nosso ingresso na OCDE. A reprodução e a imitação não-autorizadas de marcas, assim como a alteração de sinais em produtos são males endêmicos de um país que banaliza a venda, em plena luz do dia e, muitas vezes, nos arredores das cortes de justiça, de artigos falsificados, cuja distribuição acarreta danos financeiros e à imagem dos sinais contrafeitos, e cuja qualidade pífia frustra as expectativas do consumidor, chegando a colocar em risco sua saúde. Isso sem falar nas perdas para o Fisco, já que a sonegação costuma ser par constante das infrações a sinais distintivos alheios.
O mercado paralelo da pirataria exige ardil, que consiste nos esforços para enganar a clientela, e levá-la à falsa crença de que estaria adquirindo artigos da fonte original. Aliás, em um modus operandi delitivo muito semelhante àquele observado no estelionato, pois tanto o estelionatário quanto o contrafator lançam mão de um erro por eles incutido na mente de alguém, para a obtenção de vantagem indevida.
Na rotina de seu comércio ilícito, aquele que frauda sinais alheios protegidos não hesita em corromper fiscais e demais agentes públicos, em fugir ao alcance da justiça, e, muito menos, em associar-se ao crime organizado, ao narcotráfico e até ao terrorismo, segundo dados da Interpol. Daí a premência na repressão eficaz a essa modalidade de crimes que, além dos danos já mencionados, desestimulam investimentos no país, sobretudo nas áreas de pesquisa e marketing de produtos.
Contudo, parecemos letárgicos diante da gravidade do cenário de aumento ininterrupto nos casos de pirataria, sendo o Brasil um importante fabricante de produtos falsificados, e um dos maiores receptadores mundiais de falsificações. São diversos e complexos os fatores que favorecem a prática no país, dentre os quais o número de intermediários, o que dificulta o combate às quadrilhas, o conluio com autoridades fiscalizadoras, a mão de obra ociosa tornada presa fácil para a indústria do crime, os preços elevados dos produtos originais, inclusive devido à carga tributária incidente sobre estes, a existência de um mercado consumidor expressivo, as deficiências estruturais das polícias, e, ainda, certas fragilidades legislativas.
A Lei de Propriedade Industrial em vigor (Lei no 9279/96), apesar de inovadora em diversos aspectos, necessita de aperfeiçoamentos que desencorajem a prática de delitos contra os bens nela contemplados, a saber, as marcas, patentes de invenção, os desenhos industriais, e as indicações geográficas. Como se depreende do Título V, onde se acham seus dispositivos criminais, a pena máxima prevista para as modalidades mais gravosas corresponde a 1 (um) ano de detenção, o que torna os crimes contra a propriedade industrial infrações de menor potencial lesivo, a serem apreciadas pelos Juizados Especiais (Lei no 9099/95).
A sujeição a essa jurisdição específica confere vantagens aos infratores, dentre as quais a possibilidade de serem eles beneficiados pela chamada transação penal, onde o magistrado determina a substituição da pena por uma prestação de serviços à comunidade ou pelo pagamento de cestas básicas. Assim, é correto afirmar que, na esfera da propriedade industrial, a eficácia do direito penal é mínima, razão pela qual os criminosos se sentem à vontade para expandirem polos inteiros de falsificação.
Por fim, e não menos importante, a lei em discussão abre uma exceção à regra sobre a legitimidade do Ministério Público para a propositura de ações penais, e determina que as medidas criminais contra infratores de sinais distintivos sejam necessariamente ajuizadas pela parte prejudicada, salvo nos raríssimos casos de imitação de brasões ou distintivos oficiais. Eis aí mais um ônus para a vítima da lesão que, além de todos os prejuízos incorridos com o uso indevido do seu bem intangível, ainda tem de arcar com as custas judiciais, as despesas com advogados e com uma iniciativa que poderia ser desempenhada com mais agilidade e eficiência pelo braço acusador do Estado.
Diante desse quadro, entende-se a razão pela qual, segundo dados recentes da OCDE, o Brasil figura dentre os 16 países mais prejudicados pelas infrações à propriedade imaterial em geral, incluindo os direitos autorais, ocupando, ainda, o 50º lugar na produção de mercadorias ilegais. Na matemática do crime, os baixos custos da indústria da pirataria, associados à alta lucratividade do negócio e à perspectiva quase nula de riscos para os meliantes tornam muito compensadora tal prática delitiva. E assim continuará, enquanto não mexermos nas causas de mais essa ferida nacional.
*Katia Braga de Magalhães, advogada e tradutora jurídica no Rio de Janeiro, RJ. Advogada graduada pela UFRJ (1997) e com MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ pela FGV/RJ (2001). Atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros. Coautora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, em comemoração pelos 100 Anos da Revista dos Tribunais. Criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube. Colunista do Instituto Liberal (coluna Judiciário em Foco). Colunista do Boletim da Liberdade (coluna A Liberdade pela Cultura)
Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Instituto Não Aceito Corrupção
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