Política das “conspiritualidades”: o deslocamento místico-religioso da esfera pública – politica.estadao.com.br

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REDAÇÃO
15 de outubro de 2022 | 18h07
Daniel Pereira Andrade, Professor de Sociologia da FGV – EAESP
Em A casa dos espíritos, consagrado romance de Isabel Allende, um político conservador procura amenizar a paranoia anticomunista de um senador da república com os seguintes dizeres: “O marxismo não tem a mínima possibilidade na América Latina. Não vê que não contempla o lado mágico das coisas?”. O vaticínio mostra-se quase que imediatamente equivocado, tanto no livro quanto na história latino-americana, já que o romance se inspira no golpe de Estado chileno que depôs o presidente socialista, não por acaso tio da autora. Mas o que importa nessa passagem é o que ela revela sobre certa estratégia política conservadora e sua incidência na atual campanha presidencial brasileira.
Ainda antes do período eleitoral, o bolsonarismo já fazia uso político de “conspiritualidades”. Conspiritualidades são discursos que reúnem teorias da conspiração sobre inimigos ocultos que buscam uma dominação totalitária com a chamada a uma conversão espiritual como forma de combater a suposta ameaça. No caso brasileiro, os inimigos foram construídos simultaneamente como “comunistas” difusos em um contexto pós-Guerra Fria e como forças espirituais do mal que vampirizam os “verdadeiros” produtores de riqueza (empreendedores/trabalhadores), as famílias e a nação. Esse discurso misturou elementos místico-religiosos com histórico-políticos, recorrendo ao medo do sobrenatural e a preconceitos religiosos para rotular os adversários e exigir adesão ideológica irrestrita.
Na atual campanha presidencial, o bolsonarismo propôs um mote que resumiu a fórmula conspiritual: “Nosso inimigo não é externo, é interno. Não é só uma luta da direita contra a esquerda, é uma luta do bem contra o mal”. A frase condensa ao menos três visões de mundo de grupos apoiadores do mandatário: primeiro, a lógica militar da guerra ao inimigo interno, que justificou o golpe de 1964 em nome do combate à suposta ameaça comunista; segundo, a lógica ultraliberal da nova direita, que demoniza as políticas sociais e demanda livre-mercado e Estado (social) mínimo; e terceiro, a guerra santa do bem contra o mal presente em grupos evangélicos e católicos radicalizados.
Durante o período eleitoral, a guerra espiritual passou a ganhar destaque, mobilizando o preconceito contra religiões de matriz africana. Foi assim que o candidato de esquerda e sua esposa passaram a ser associados à magia negra por terem frequentado ou dialogado com adeptos de cultos afro-brasileiros. A acusação de satanismo, assim como falsos boatos sobre o fechamento de igrejas correram soltos nas redes sociais e grupos de aplicativos de mensagens. Também foram impulsionados por pregações de líderes religiosos alinhados ao bolsonarismo. A resposta da campanha e de apoiadores de Lula veio na forma de um vídeo que mostrava Bolsonaro em um templo maçom, prática igualmente ligada ao satanismo por teorias conspirituais. Os episódios recentes no dia de Nossa Senhora Aparecida colocaram mais lenha na fogueira santa, com acusações contra o bolsonarismo de profanação e de tentativa de cooptação da celebração, além de recriminação da adoração de um “bezerro de ouro” político.
Essas estratégias provocaram um importante deslocamento na esfera pública. Durante boa parte da Nova República, a oposição entre PT e PSDB se centrava no debate sobre os resultados de políticas públicas e econômicas, assumindo um caráter excessivamente gerencialista que desencantava a política ao excluir a discussão sobre visões valorativas de bem comum. Agora, as estratégias conspirituais bolsonaristas voltam a encantar a política. Mas não porque recorram a uma visão racionalizada de bem comum, e sim porque apelam a visões místico-religiosas. Até mesmo previsões mágicas sobre o futuro ganhador do pleito entraram em disputa, algumas feitas com linguagem descaradamente alinhada com o discurso da campanha (e possivelmente encomendadas por ela).
A própria concepção de verdade na política sofreu um desencontro. Não se responde a uma acusação de satanismo com números e gráficos. O debate público abandonou parcialmente o recurso a evidências, sejam elas indicadores quantitativos, provas do direito, documentos históricos ou notícias da imprensa. Em seu lugar, entrou a revelação voltada às “invidências”. Trata-se do oferecimento pelas autoridades místico-religiosas de um sentido para as experiências subjetivas, ao mesmo tempo alinhando-se empaticamente a elas e dirigindo o seu desenvolvimento. Eis, portanto, uma verdade que se assenta sobre as convicções e o imaginário, fundando-se mais em um lastro emocional do que na lógica ou na adequação à realidade. Por isso, tal forma de governo pela verdade torna os sujeitos impermeáveis ao discurso racional-científico baseado nos fatos: simplesmente não se está trabalhando no mesmo nível argumentativo.
As conspiritualidades, em última instância, apresentam-se politicamente como uma estratégia de captura do imaginário em um momento de crise estrutural do capitalismo. Por meio delas, governos de extrema-direita, que não dispõem de políticas públicas para melhorar as condições de vida, fecham as portas para a emergência de alternativas ao modelo de mercado. O seu segredo está em se comunicar de maneira empática com sujeitos que estão atomizados pela concorrência, frustrados com o fracasso econômico e decepcionados com a política. A empatia permite direcionar as emoções negativas contra supostos inimigos ocultos que distorcem a competição e vampirizam a justa recompensa. As conspiritualidades naturalizam assim a guerra de todos contra todos em nome da sobrevivência no mercado e canalizam a frustração contra aqueles que desafiam a ordem. O combate às forças de resistência ganha então ares de uma guerra santa.
O desafio para a esquerda e para as demais forças democráticas é como dialogar com sujeitos que já estão com a visão de mundo e os afetos capturados pelas conspiritualidades. De um lado, produzir contradiscursos no mesmo nível argumentativo é jogar no terreno do inimigo e reforçar concepções místicas que pouco ou nada contribuem para a emancipação política. De outro, insistir em trazer a discussão para o âmbito das evidências e da fria racionalidade gerencial corre o risco de simplesmente não comunicar com os sujeitos. A saída parece se encontrar na formulação de um imaginário alternativo, justamente essa dimensão em que valores, política e religião se cruzam.
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