Políticas Afirmativas: Política de Ninguém? – politica.estadao.com.br

0
132

*
REDAÇÃO
21 de novembro de 2022 | 23h57
Tatiana Dias Silva, Doutora em Administração pela Universidade de Brasília
Políticas afirmativas são medidas especiais que procuram enfrentar desigualdades. No Brasil, as ações afirmativas são estratégias centrais para as políticas de promoção da igualdade racial. Notadamente, no início dos anos 2000, ações afirmativas passaram a ser adotadas por universidades, estados e municípios, com o propósito de enfrentar desigualdades raciais no acesso ao ensino superior e aos cargos do setor público.
Após processo de difusão subnacional, estas políticas afirmativas conquistaram outro patamar ao serem objeto de legislações específicas de âmbito federal: as Leis de Cotas no Ensino Superior (Lei n. 12.711/2012) e de Cotas em Concursos Públicos (Lei n. 12.990/2014).
Apesar do aumento da participação de negros no ensino superior e na burocracia, a ausência do governo federal no acompanhamento das iniciativas é sintomática e compromete o alcance, aperfeiçoamento e continuidade dessas políticas afirmativas. Vale registrar o esforço de pesquisadores/as e instituições de ensino e de pesquisa em monitorar e avaliar, ainda que com limitações, essa política pública.
Recentemente, o Tribunal de Contas da União (TCU) manifestou-se sobre a política de cotas no ensino superior (Acórdão TCU TC 004.907/2022-1). Em 2022, a política afirmativa completa 10 anos, momento em que deveria passar por revisão. No entanto, relatório da auditoria destaca que “são notórias a desarticulação, a omissão dos agentes envolvidos e as deficiências de monitoramento e avaliação da política de cotas (…) Essa ausência de dados, por certo, prejudicará imensamente a revisão da política pública.”
Entre os pontos de atenção levantados, o Tribunal destaca a ausência de regulamentação das comissões de autodeclaração (12% das Instituições Federais de ensino ainda não realizam o procedimento de heteroidentificação e 58% das que realizam o fizeram após 2019). Esse procedimento tem se mostrado essencial para evitar fraudes e desvio do propósito da política pública. Outra questão apontada diz respeito à adoção de critérios restritivos no fluxo do preenchimento das cotas e à necessidade de correção na focalização de renda, que tem criado maior concorrência para os segmentos mais pobres.
Constatou-se, junto ao MEC, ausência de relatórios de avaliação com dados a partir de 2017. Por sua vez, mais da metade das Instituições Federais de Ensino que responderam ao questionário enviado pelo TCU “afirmam não possuir ações de acompanhamento e avaliação dessa política”.
A vigência da Lei de Cotas no Serviço Público (Lei 12.990/2014) encerra-se em junho de 2024. De modo ainda mais grave do que sua contraparte no ensino superior, a ausência de revisão e análise sistemática da ação afirmativa nos concursos públicos pode comprometer uma possível e desejável renovação. A título de exemplo, estudos mostram o déficit na implementação da política afirmativa para concursos de docentes universitários, cuja oferta de vagas de modo fracionado, cercada de interpretações restritivas e à revelia do disposto pelo STF (vide ADC. 41/2017), impediu que milhares de vagas fossem sequer reservadas a candidatos negros (vide trabalhos de Luis Mello e Vanessa Palma).
A gestão e coordenação dessas políticas afirmativas é uma emergência para o enfrentamento ao racismo e para garantir a efetividade e melhor desempenho dessas iniciativas, tão necessárias e tão caras para a sociedade brasileira. São resultados de muitas lutas, resistência e resiliência, especialmente de mulheres e homens negros que doaram suas vidas para alcançarmos essas conquistas.
É preciso garantir instâncias com pessoal, orçamento e poder nas pastas responsáveis por essas políticas afirmativas: o Ministério da Educação e o Ministério da Economia (ou o futuro órgão central de gestão de pessoas do governo federal).
Com efeito, a atribuição de coordenação da política pode e deve ser compartilhada pelas áreas responsáveis pela igualdade racial, pauta indígena e de pessoas com deficiência. Nesse momento, todavia, é imprescindível não sucumbir à tentação de segregar esse debate na pasta de igualdade racial. As áreas setoriais devem assumir sua responsabilidade no enfrentamento ao racismo.
Estamos em momento de transição no governo federal. Espera-se que a questão racial não fique restrita a uma eventual pasta para o tema. A desejada transversalidade não pode limitar-se à “sensibilidade” de políticos e burocratas. A justa expectativa é que este problema social ocupe função central na estratégia de desenvolvimento do país, proporcional à parcela da população que se autodeclara como preta e parda (56,1%) e ao tamanho das desigualdades raciais e dívida social que subjugam a população negra às piores condições de vida (vide recente estudo do IBGE). Não há democracia nem desenvolvimento nacional possíveis sem enfrentar o racismo e as desigualdades raciais.
O problema das desigualdades raciais e do enfrentamento ao racismo não é restrito aos negros brasileiros nem aos poucos negros na equipe de transição. De problema de “ninguém”, as políticas afirmativas precisam ser encaradas como problema de todos e estar em todos os lugares.
publicidade
publicidade
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.
Institucional
Atendimento
Conexão Estadão
Hoje
Copyright © 1995 – 2022 Grupo Estado

source

Leave a reply