Promessas de Lula no exterior têm efeito econômico restrito para o Brasil – VEJA

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Diante de 33 chefes de governo e suas sempre inchadas comitivas, o presidente Lula abriu o mais aguardado discurso do encontro de cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), em Buenos Aires, com uma frase emocionada: “Quis o destino que minha primeira atividade fora do país neste novo mandato fosse na Argentina, e para uma reunião da Celac”. Na realidade, o destino teve pouco a ver com a ocasião. Lula inaugurou sua agenda internacional no vizinho ao Sul — um gesto, aliás, comum entre mandatários brasileiros, que assim prestigiam o maior parceiro comercial na região —, e ainda por cima no plenário de uma organização regional da qual o país fora removido por Jair Bolsonaro, por ser este o palco ideal para reiterar que as relações com a América Latina, como aconteceu nos seus dois mandatos anteriores, de 2003 a 2010, serão prioridade no atual governo.
Paparicado de todos os lados, recebido com tratamento de nobreza pelo anfitrião, seu amigo Alberto Fernández (leia a entrevista), tratado com deferência pelos colegas, muitos dos quais discípulos do mesmo catecismo de esquerda, Lula não teve a menor dificuldade em estabelecer de imediato sua posição de liderança. A questão é: vale a pena? Economistas e diplomatas apontam que, nas condições atuais — bem diversas das de vinte anos atrás —, o Brasil tem muito pouco a ganhar instalando a ideologia à frente do pragmatismo e dando preferência aos laços com a América Latina, um pedaço do planeta que cresce abaixo da média global (1,3%, contra 1,7%, segundo o Banco Mundial) e está para lá de escanteado no cenário geopolítico mundial.
arte América Latina
Mal começou e o terceiro mandato de Lula já é constantemente comparado aos dois primeiros — em boa parte, por incentivo do próprio presidente, que vira e mexe retoma mantras do passado como se o mundo não tivesse girado ao redor do Sol. Em seu discurso de posse em 2003, ele declarou que a prioridade de política externa seria “a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida”. Na reunião de cúpula, veio o eco: “Nossa missão é a consolidação de uma região pacífica, baseada em relações marcadas pelo diálogo e pela cooperação”. Lula pediu, lá atrás, uma “revitalização do Mercosul, enfraquecido pelas crises de seus membros”. Agora, em Buenos Aires, o ministro da Secretaria de Comunicação Social, Paulo Pimenta, enfatizou que o Mercosul “está enfraquecido porque perdeu a identidade e precisa ser revitalizado”. Foi, em resumo, mais do mesmo. “Esse discurso, congelado há duas décadas, não foi nem um pouco animador”, diz Wagner Parente, sócio da BMJ, consultoria de relações governamentais.
As estatísticas comprovam que priorizar a integração com os países latino-americanos neste momento não renderá grande coisa em termos práticos. “A região tem pouca relevância”, afirma Paulo Velasco, professor de política internacional da Uerj. “Os últimos dez anos foram uma década perdida.” A situação, portanto, é diversa daquela na virada do século, quando o Brasil e seus vizinhos se beneficiaram de um boom no comércio de commodities que gerou empregos, aumentou salários e multiplicou receitas públicas.
Somando a pujança do mercado internacional à estabilidade econômica herdada do governo FHC, o crescimento do PIB brasileiro passou de 1,1% em 2003 a 7,5% em 2010 e sobrava dinheiro para grandes projetos no exterior (leia-se: América Latina e África), com exportação de tecnologia e mão de obra qualificada. “Ele é o cara”, disse Barack Obama em 2009 sobre Lula e seu prestígio no exterior. Foi bom enquanto durou — encolhidos os negócios internacionais e com o mundo atravessando mais uma de suas cíclicas crises econômicas, o voo das nações em desenvolvimento perdeu altura e estacionou (veja os gráficos). A participação latino-americana no PIB global, que chegou a alcançar 8% no fim do segundo mandato petista, hoje não passa de 5,7%. “Lula voltou em um cenário diferente, que exige mudanças na abordagem”, alerta Velasco.
Colocar-se à frente do bloco formado pelos países vizinhos é um caminho natural para o presidente brasileiro — dessa vez, sozinho no páreo. No passado, Lula competia ativamente com o venezuelano Hugo Chávez pela liderança regional, apesar dos abraços efusivos e elogios mútuos, também tinha de conviver com a aura de Fidel Castro, a quem prestou reverência diversas vezes, pairando sobre a esquerda latina. “O isolacionismo do governo Bolsonaro deixou a região acéfala e ninguém conseguiu preencher o papel do Brasil”, diz Rubens Ricupero, diplomata e ex-ministro da Fazenda. Na liderança da região, o país ganha algum peso — melhora, por exemplo, sua chance de obter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU —, mas, em contrapartida, atrela-se a nações de menor envergadura diplomática, o que enfraquece sua posição em certas tratativas com as potências. Cansado de esperar que o Mercosul funcione, o Uruguai decidiu iniciar conversas bilaterais com a China. Lula, que parou em Montevidéu antes de voltar ao Brasil, tentou demover o presidente Luis Alberto Lacalle Pou, de centro-direita, da ideia, mas sem sucesso.
arte Lula
Se o Brasil pode tirar algum benefício político de sua opção preferencial pelos pobres, em termos econômicos qualquer ganho se desfaz no ar. Em 2022, o país exportou 77,6 bilhões de dólares para a China, 42,8 bilhões para a União Europeia e 31 bilhões para os Estados Unidos. Para a América Latina, a conta não passou de 5,1 bilhões. Mais ainda: entre 2010 e 2019, período em que as importações dos latino-americanos aumentaram 12,9% (sobretudo vindas da China), as exportações brasileiras para os vizinhos caíram 24,7% — e o naco da Argentina foi responsável por 70% desse declínio. Por outro lado, as vendas para o Brasil seguem sendo o motor mais potente da economia argentina — que demonstra claramente quem mais tem a ganhar com a definição de prioridades de Lula.
Se fosse conduzida com rigor e seriedade, a integração latino-americana poderia trazer benefícios. Infelizmente, o quadro está longe disso. “Bem-feita, ela favorece o crescimento, explora o que cada membro tem de melhor, aumenta a eficiência”, explica o economista José Roberto Mendonça de Barros. “Mas o projeto de integração tentado aqui falhou e agora é perigoso nos abraçarmos a uma região em declínio.” Por trás do fracasso do Mercosul está, segundo Mendonça de Barros, a resistência do pensamento econômico regional à ideia de integração. Este naco do planeta se industrializou essencialmente para substituir importações e alavancar e proteger a produção nacional, formando um conjunto de países voltados para questões e interesses internos, refratários a abrir fronteiras para o resto do mundo. Resultado: mais de trinta anos depois da fundação do Mercosul, o que deveria ser um mercado comum não opera como tal.
O ex-ministro Ricupero avalia que Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai “puseram a carroça na frente dos bois” ao formarem o bloco sem criar mecanismos que assegurassem o equilíbrio macroeconômico e um sistema comum de tributação de consumo. “Era preciso ter elaborado uma área de livre-comércio eficaz”, diz. A lição, pelo jeito, não foi aprendida. Na visita de Lula a Buenos Aires, Brasil e Argentina replicaram o velho sonho de um “euro” sul-americano e ensaiaram lançar uma moeda comum, o sur, para, segundo seus proponentes, evitar a dependência de câmbio estrangeiro. “É um desvario. Com tamanha assimetria entre o peso e o real, o Brasil vai sair prejudicado”, avisa o economista Maílson da Nóbrega.
Em outra medida com gosto de volta ao passado, anunciou-se em Buenos Aires que o governo brasileiro planeja direcionar a linha de crédito reservada a investimentos externos para obras nos países da região. “O BNDES vai voltar a financiar projetos de engenharia para ajudar os países vizinhos a crescer e vender o resultado desse enriquecimento para o Brasil”, declarou Lula. Investimentos internacionais não são, por si só, condenáveis e podem de fato ter resultado lucrativo. Mas a menção ao BNDES ressuscita o fantasma da corrupção e dos desvios cometidos pelas empreiteiras favorecidas pela generosidade petista com o dinheiro público e os seguidos calotes da Venezuela e de Cuba, entre outros.
Até mesmo a onda vermelha que tomou conta da América Latina nas últimas eleições (veja os mapas acima), facilitando a liderança de Lula, deve ser vista com cautela na formulação de uma diplomacia voltada para a região. “Essa onda gerou uma esquerda tão multifacetada que uma ação coordenada parece cada vez mais difícil”, afirma Marcos Azambuja, ex-embaixador do Brasil na Argentina. Enquanto Gabriel Boric, no Chile, condena os regimes ditatoriais de Venezuela, Nicarágua e Cuba, Gustavo Petro, na Colômbia, estendeu uma mão amiga ao venezuelano Maduro assim que pôs os pés no Palácio de Nariño — atitude avalizada por Lula e Fernández, que acham injusto criticar Maduro por querer impor seu próprio “modelo” de governo, como se repressão e brutalidade fossem aceitáveis. No auge da turbulência, manifestações ocupam as ruas do Peru, contra o governo que prendeu o presidente Pedro Castillo, de esquerda, depois de uma tentativa de golpe em benefício próprio.

A boa diplomacia, ensinam Ricupero e Azambuja, parte de uma análise correta dos interesses do país e de uma visão realista do mundo para obter vantagens em termos de comércio, investimentos, tecnologia, financiamento e apoio político. Mais do que nunca, Lula precisa olhar de maneira objetiva para o tabuleiro global, aspecto crucial para o bom andamento das duas próximas viagens: Estados Unidos de Joe Biden em fevereiro e China de Xi Jinping em março.
No auge do reconhecimento internacional, quando era presença disputada em encontros multilaterais, o presidente brasileiro fincou pé na ideologia, privilegiou o elo com Pequim e perdeu espaço nas relações com Washington. Agora, o nível de rivalidade entre as duas potências se elevou e navegar entre elas requer habilidade. De um lado, Joe Biden se esforça para cortar a dependência da China estimulando investimentos nos países próximos, o chamado nearshoring. De outro, a China oferece troca de tecnologia e oportunidade de expandir indústrias de ponta. “A melhor estratégia para o Brasil é a de manter uma equidistância pragmática”, diz Velasco, da Uerj. Se usar do bom senso e levar em conta os melhores interesses do país, o governo Lula terá de se adequar ao velho ditado: amigos, amigos, negócios à parte — sem ideologia.
Publicado em VEJA de 1º de fevereiro de 2023, edição nº 2826
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