Quando a profecia (política) falha – UOL
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Jornalista, é diretor de Comunicação do Instituto Questão de Ciência (IQC), editor-chefe da Revista Questão de Ciência e autor, entre outros, de “Negacionismo & Os Desafios da Ciência” (Editora de Cultura, 2022)
A orgia fascista que tomou conta de Brasília no domingo (8) sugere que o bolsonarismo converteu-se numa seita pré-milenarista, cujos integrantes cansaram-se de esperar a ressurreição de seu Jair Messias pela “Armadíssima Trindade” (Exército, Marinha e Aeronáutica) e resolveram fazer o apocalipse pelas próprias mãos. Analistas que tentam enquadrar racionalmente a depredação da capital federal voltam de mãos abanando porque usam a chave errada: o que houve não foi, em essência, uma tentativa de golpe de Estado, mas um êxtase místico, uma catarse religiosa.
“Milenarismo” é à crença de que a história humana caminha inexoravelmente rumo a uma utopia que durará por um longo período (“mil anos”, daí o termo). O conceito vem de uma leitura peculiar do Apocalipse, o último livro da Bíblia. Sob a forma de pré-milenarismo, a doutrina assevera que o milênio de delícias será precedido por uma grande batalha, o choque definitivo entre o bem e o mal.
O esquema mental construído pelo pré-milenarismo transborda para o mundo secular. O historiador americano Richard Landes, especializado em movimentos milenaristas medievais, aplica-o sem dificuldade à ascensão do nazismo, apontando que Adolf Hitler conseguira convencer o povo alemão de quatro falsos “fatos” de sabor pré-milenarista: que a batalha apocalíptica tinha começado; que os alemães precisavam de um líder brutal para guiá-los à vitória; que ele, Hitler, era esse líder; que a vitória traria a utopia.
Em seu livro “Heaven on Earth”, Landes, depois de explicitar as quatro mentiras, passa a explicar como Hitler conseguiu levar a Alemanha a aceitá-las: explorando conspiracionismo, ressentimento, desejo por ordem e hierarquia, messianismo, nacionalismo e a fusão entre política e religião.
É mais do que plausível que esse complexo de crenças e sentimentos estivesse presente nos corações e mentes dos saqueadores do Planalto. Com a diferença fundamental de que a massa golpista tinha diante de si o fato de que seu avatar divino havia sido derrotado —e, pior, fugira com o rabo entre as pernas.
Em 1954, um grupo de psicólogos acompanhou os efeitos do fracasso radical de uma visão profética sobre um grupo que esperava ser resgatado da Terra por um disco voador, com data e hora marcadas. O grupo era composto por pessoas comuns: sua líder era uma dona de casa; o principal apóstolo, um médico.
No livro “Quando a Profecia Falha”, os pesquisadores contam que, para os membros de maior imersão —que haviam vendido imóveis, rompido relacionamentos—, o fracasso levou a um esforço redobrado para espalhar e aprofundar a fé. “Abri mão de praticamente tudo. Cortei cada laço. Queimei cada ponte. Dei as costas ao mundo. Não posso me dar ao luxo da dúvida. Tenho que acreditar”, disse o médico apóstolo.
O saque da praça dos Três Poderes foi, além de um ato político, uma cerimônia mágica para tentar fazer descer o tão prometido e esperado disco voador. Mais do que uma ideologia, o bolsonarismo é uma fé degenerada.
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