Redação do Enem convida a refletir sobre reconstrução do país pós-Bolsonaro – UOL Confere

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
É jornalista e doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Cobriu conflitos armados em países como Timor Leste e Angola e violações aos direitos humanos em todos os estados brasileiros. Professor de Jornalismo na PUC-SP, foi pesquisador visitante do Departamento de Política da New School, em Nova York (2015-2016), e professor de Jornalismo na ECA-USP (2000-2002). Diretor da ONG Repórter Brasil, foi conselheiro do Fundo das Nações Unidas para Formas Contemporâneas de Escravidão (2014-2020) e comissário da Liechtenstein Initiative – Comissão Global do Setor Financeiro contra a Escravidão Moderna e o Tráfico de Seres Humanos (2018-2019). É autor de “Pequenos Contos Para Começar o Dia” (2012), “O que Aprendi Sendo Xingado na Internet” (2016), ?Escravidão Contemporânea? (2020), entre outros livros.
Colunista do UOL
13/11/2022 18h13
O tema escolhido para a redação do Enem, neste domingo (13), foram os “desafios para a valorização de comunidades e povos tradicionais no Brasil”. A proposta é um convite à reflexão sobre a reconstrução do Brasil a partir dos escombros do governo Bolsonaro, que ignorou a lei e tratou esses grupos como cidadãos de segunda classe.
Os últimos quatros anos foram de desprezo ou perseguição a indígenas, ribeirinhos, quilombolas, caiçaras, extrativistas, faxinalenses, quebradeiras de coco de babaçu, vazanteiros, veredeiros, pescadores tradicionais, entre tantos outros que viram a erosão das políticas voltadas à proteção de sua dignidade.

A proposta, portanto, é um alento considerando os esforços para o desmonte do Inep, instituto responsável pela prova, e do Ministério da Educação – transformado em instrumento tanto de guerra cultural bolsonarista quanto de corrupção na forma da propina em ouro pedida por pastores amigos do presidente.
Tudo começa com a visão do próprio Bolsonaro sobre esses grupos. Ele foi eleito, em 2018, defendendo que não existe racismo no Brasil e que, portanto, eram descabidas as acusações sobre os ataques racistas que ele proferiu contra povos tradicionais. Isso foi música aos ouvidos de uma parcela da população que, hoje, pede golpe militar, canta para pneu de trator e se prende em caminhões por medo de perder seus privilégios frente aos historicamente fodidos.
Há quatro anos, Jair prometeu não demarcar “um centímetro quadrado” de territórios indígenas e quilombolas. Daí, no controle do Poder Executivo, deu início a uma ofensiva que tem tudo para ser lembrada como as ações de consequências genocidas levadas a cabo na ditadura militar. Negou-lhes terras, forçou sua aculturação, dificultou acesso a alimentos e medidas de proteção à covid-19, permitiu a exploração econômica de suas áreas, mesmo à revelia.
Desmontou instituições que atuavam no monitoramento e fiscalização dos direitos de povos e comunidades tradicionais, sequestrando Funai, Ibama, ICMBio, Incra e até partes da Procuradoria-Geral da República. Tudo isso trouxe morte, doenças, desnutrição infantil.
Em 2019, ele foi representado no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda, por incitação ao genocídio de indígenas. Quem levou o caso à corte foi a Comissão Arns e o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos (CADHu). E isso antes do que conscientemente deixou de fazer na pandemia para salvar vidas.
O presidente deixava claro seu incômodo com os direitos das populações tradicionais, previstos na Constituição Federal de 1988, desde que era deputado federal. Em uma palestra na sede da Hebraica, no Rio de Janeiro, em 2017, Bolsonaro proferiu um ataque às comunidades quilombolas que se tornou vergonhosamente icônico. “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas [medida de peso de gado]. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele ser”, afirmou.
Ele devia ir comer um capim ali fora para manter as suas origens”, foi a resposta do então deputado Jair Bolsonaro após um indígena jogar água em sua direção, em maio de 2008, num bate-boca em uma audiência pública, na Câmara, para discutir a demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima.
Quatro anos antes, durante outra reunião sobre o mesmo tema, Jair havia dito: “O índio, sem falar a nossa língua, fedorento, é o mínimo que posso falar, na maioria das vezes, vem para cá, sem qualquer noção de educação, fazer lobby”.
Criadores de gado e fazendeiros de soja que operam na ilegalidade, madeireiros, garimpeiros e grileiros de terra sentiram-se empoderados pelos discursos de Bolsonaro. Aproveitaram-se do fato de que a invasão aos territórios tradicionais tem sido informalmente tolerada, causando violência e assassinatos.
Não só: Bolsonaro foi além e, diante dos incêndios na Amazônia levados a cabo por agropecuaristas, grileiros e madeireiros, culpou os povos e comunidades tradicionais pelas queimadas em discurso nas Nações Unidas.
E diante das reclamações por causa de invasões de garimpeiros a territórios indígenas ocorridas em seu governo, como aquelas contra a etnia Waiãpi, no Estado do Amapá, e os Yanomami, em Roraima, Bolsonaro tem dito que há um complô internacional para a transformação dessas áreas em países independentes a fim de que suas riquezas possam ser exploradas.
Os territórios indígenas (que são responsáveis pelas mais altas taxas de conservação ambiental do país) nunca realizaram um plebiscito ou montaram uma campanha de guerra contra Brasil, ao contrário do que faz o presidente diariamente. Pelo contrário, querem é mais atenção do governo federal, querem se sentir efetivamente brasileiros através da conquista de sua cidadania, o que inclui o direito à sua terra.
Povos e comunidades tradicionais nunca tiveram vida fácil no Brasil, é importante que se diga. Nos governos petistas, o desrespeito aos seus direitos pode ser simbolizado na construção da hidrelétrica de Belo Monte, que atropelou indígenas e ribeirinhos no Pará. Mas a crueldade do governo Bolsonaro só é comparável à destruição perpetrada pela ditadura militar.
Não à toa, Jair adorava convidar governantes estrangeiros para sobrevoar de Manaus a Boa Vista a fim de mostrar um exemplo de “preservação”. Ironicamente, esse trecho vivenciou a tentativa de genocídio do povo Waimiri-Atroari, quando as obras da BR-174 ajudaram a reduzir de 3 mil indivíduos, nos anos 1970, para 332, em 1980.
Durante quatro anos, o governo Bolsonaro desvalorizou os povos e comunidades tradicionais, dizendo a eles basicamente que deveriam se integrar ao modelo de sociedade apresentado por ele, abrindo mão de seus direitos conquistados por muito suor e sangue, ou seriam tratados como estorvo, ressuscitando o “ame-o ou deixe-o” da ditadura.
Um processo de desumanização, em que as pessoas são medidas em arrobas.
O primeiro grande desafio para a valorização de povos e comunidades tradicionais foi vencido, com a derrota do capitão. O segundo, a partir do ano que vem, é frear a inércia de desconstrução imposta pela atual gestão, fazendo valer a lei. Depois, convencer uma parte da população que deu ouvidos ao presidente de que eles têm direito a manter sua vida e seu estilo de vida. Parece pouco, mas nisso reside um futuro inteiro.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL
Leonardo Sakamoto
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