Reeleição de Bolsonaro impulsionaria radicalização de extremistas cristãos – folha.uol.com.br

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Pastores evangélicos apoiadores de Jair Bolsonaro oram em frente ao Congresso Nacional, em Brasília Ueslei Marcelino – 1º.out.22/Reuters
Teólogo pela PUC-Rio e mestre em religião e sociedade pela Universidade Columbia. Professor assistente na Universidade de Oklahoma e autor de “Teologia Negra: o Sopro Antirracista do Espírito”
[RESUMO] O nacionalismo cristão, marcado por alto nível de radicalização e adesão a pautas como o combate da “ideologia de gênero”, impõe obstáculos enormes à tentativa de grupos progressistas promoverem o diálogo com evangélicos. O voto em candidatos bolsonaristas expressa uma lógica que combina a busca da proteção de Deus para sobreviver em um contexto de medo e precariedade e a defesa da veemência da autoridade do Estado.
O nacionalismo cristão é uma ideologia política de extrema direita que se vale, quase sempre, de uma gramática religiosa para justificar sua visão de mundo. Invisibilizada e fora do radar, a extrema direita não recebeu a devida atenção no Brasil, tampouco o nacionalismo cristão. Os resultados do primeiro turno das eleições, no entanto, nos mostraram que a democracia brasileira está muito mais em risco do que se poderia imaginar.
Ao contrário do que se possa pensar, o nacionalismo cristão não diz respeito apenas a evangélicos, católicos ou outro grupo cristão. Embora seja definido como um conjunto de mitos, tradições, símbolos, narrativas e sistemas de valores que trabalham principalmente para a fusão ou o domínio do cristianismo na vida social, o nacionalismo cristão se tornou uma ideologia política global de extrema direita.
Enquanto tal, ele se adapta perfeitamente a diferentes contextos e realidades, com variáveis que abarcam a supremacia branca, o autoritarismo, o militarismo e o antissemitismo.
Na mesma época que Trump —um bilionário que nem de longe se aproximava da vida religiosa de outros presidentes americanos— surpreendia o mundo com sua eleição em 2016, o Brasil havia passado por um tenso processo que terminou com o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff (PT). Nesse momento, já havia uma extrema direita animada no Brasil, que buscava espaço e protagonismo, mas faltava um rosto para seu projeto politico.
O rosto apareceu durante a própria votação do impeachment, quando um deputado do Rio de Janeiro, visto até então como uma figura caricata que defendia que “bandido bom é bandido morto”, saudou Carlos Alberto Brilhante Ustra durante seu voto.
O ambiente político adequado para a radicalização da extrema direita normalizou o elogio e a saudação a um dos piores torturadores da ditadura militar. Jair Bolsonaro era o rosto que os radicais de direita precisavam para dizer o que pensam e aglutinar um projeto de poder, mesmo que não houvesse um movimento organizado.
Bolsonaro, porém, também foi fundamental para a extrema direita religiosa cristã, principalmente evangélica, que agradeceu a Deus o surgimento de um líder político que não se envergonhava de reivindicar um governo que atendesse à “maioria da população”, “cristã e conservadora”.
Ao dizer que colocaria o Brasil acima de tudo e Deus acima de todos, Bolsonaro fez a síntese perfeita do nacionalismo cristão como ideologia de extrema direita, que, a exemplo dos Estados Unidos, vislumbrou tomar o país, literalmente.

Uma extrema direita neoliberal e ultraliberal queria o país na direção de um neoliberalismo econômico e social e almejava que o governo interrompesse as políticas que beneficiavam quem “não se esforçava” —por meio de cotas, principalmente para negros e indígenas, e da “imposição” de políticas de diversidade—, que destruíam as universidades públicas com o “marxismo cultural” e que, na visão desse grupo, retardavam o desenvolvimento do país e o impediam de se tornar uma nação séria e civilizada.
Uma extrema direita cristã queria o país livre da ameaça do comunismo, do “marxismo cultural” e da “ideologia de gênero”, que ameaçavam perverter as crianças, buscavam tratar grupos LGBTQIA+ como família, destruindo a família tradicional —o verdadeiro “projeto de Deus” —, e propunham a descriminalização do aborto e das drogas.
Claro, líderes evangélicos ultraconservadores, principalmente pentecostais e neopentecostais, queriam mais poder, mais dinheiro, mais influência, mais controle e um país e uma sociedade mais moldados à sua própria interpretação reacionária.
A estratégia de “conversar com os evangélicos” será infrutífera se o propósito for convencer esse segmento de que o bolsonarismo trai os princípios do evangelho e ameaça a democracia. O nacionalismo cristão abriga um nível de radicalização que ultrapassa grupos políticos ou o que os analistas passaram a chamar de polarização. O nacionalismo cristão tem a ver com um nível de radicalização que destrói os laços sociais, inclusive os familiares.
Essa conversa será infrutífera se não considerar que não estamos diante de uma disputa de interpretação bíblica entre fundamentalistas e progressistas, principalmente porque parece partir da premissa de que o convencimento é a questão —como se a direita, os conservadores ou mesmo a extrema direita tivessem mais habilidade para dialogar com os evangélicos, principalmente nas periferias.
Isso significa olhar para os evangélicos e ver uma mente vazia à espera de justificativas convincentes para decidir o voto, mas esse não é o jogo que a extrema direita e o nacionalismo cristão fazem. O nacionalismo cristão, como ideologia fascista, cria e mantém firme a ideia de que seus inimigos querem livrar o país das pessoas honestas, civilizadas, trabalhadoras, de bem, cristãs.

Se muitos evangélicos nas favelas votaram em massa em Cláudio Castro (PL) para o Governo do Rio de Janeiro, a despeito de sua curta gestão ter sido responsável pelas maiores chacinas em periferias no estado até agora, não foi apenas em razão de sua máquina eleitoral ou da identificação religiosa com sua fé cristã conservadora.
Esse é o voto que traduz o aprofundamento da lógica individualista —ou identitária, quando coletiva, referindo-se à “segurança do meu grupo”, como uma igreja—, da assimilação de que a sobrevivência é justificada pela “proteção de Deus” e por andar no “caminho certo”, obedecendo a lei e a ordem (“quem não deve não teme”), e da compreensão de que a autoridade do Estado precisa ser veemente e forte, como a de Deus.
Nesse contrato social para viver em locais precarizados, as pessoas cuidam da sua família (da criação dos seus filhos, da busca do sustento do dia a dia), “fazem por merecer” e “não mexem com ninguém”, e o Estado, por sua vez, protege a comunidade com autoridade e firmeza. O medo é central, e a extrema direita joga nesse campo. Não se trata de teologia ou hermenêutica bíblica, mas de ideologia política.
As ideias de liberdade, ordem e violência são fundamentais para a extrema direita e o nacionalismo cristão. A liberdade tem um sentido quase libertário, que permite vislumbrar um segmento social sem restrições e não sujeito a nenhuma regulação, principalmente de governos, e, ainda mais, de governos com viés progressista.
O que lideranças cristãs de extrema direita e instituições como o Instituto Brasileiro de Direito e Religião e a Jocum (Jovens com uma Missão) entendem como defesa da liberdade religiosa é a defesa de uma supremacia cristã, em que a interpretação ultraconservadora e moralista do cristianismo deve pautar a ordem social e não impor limites, por exemplo, à assimilação cultural representada pela evangelização de povos originários.
Afinal de contas, há um consenso na extrema direita evangélica de que o cristianismo e o povo cristão são, definitivamente, os mais perseguidos do mundo. Essa é uma das razões pelas quais eles estão convictos da necessidade de, além de ocupar o poder, empreender todos os esforços para limitar o acesso ao processo politico e democrático de outros grupos.

Tudo pode ser uma ameaça à sua existência e a seu poder político. Projetos como o Escola sem Partido e a “criminalização da cristofobia” atendem juntos ao projeto da ideologia do nacionalismo cristão de interditar o alcance da crítica, da diferença e da defesa da diversidade em uma sociedade desigual.
O nacionalismo cristão é um fenômeno transnacional e, embora Donald Trump tenha oferecido o ambiente político necessário para sua efervescência, a Hungria de Viktor Orbán se tornou o farol do novo movimento de políticos e governos de extrema direita no mundo.
Orbán, um cristão com laços católicos, ao lado de seu braço direito, Katalin Novák, uma cristã reformada (calvinista) que foi ministra da Família e é a atual presidente do país, inspirou e encorajou governos autoritários mundo afora, o brasileiro incluído.
Prova disso é que o primeiro-ministro húngaro é celebrado em encontros de extrema direita nos Estados Unidos, quase um ídolo para Giorgia Meloni, a provável próxima primeira-ministra da Itália, e passou a expressar o horizonte do partido de extrema direita espanhol Vox, que ganhou tração com isso.
O resultado das eleições brasileiras, além de frustrar as expectativas de derrotar um líder de extrema direita ainda no primeiro turno, mostrou que está mais que na hora de levar a sério essa ideologia reacionária.
Embora esforços em direção ao segmento evangélico não devam ser descartados, é preciso ter nitidez ao olhar para os efeitos do que já não diz respeito à moral religiosa ou à forma de enxergar o mundo a partir da religião.
Estamos frente a um movimento global que se tornará ainda mais radical em um eventual segundo mandato de Bolsonaro. Quando o senador Magno Malta disse “capitão, estou pronto” para “não permitir os destruidores da nação voltarem ao poder”, não se tratava de uma retórica meramente fascista. É o içamento de uma bandeira cristã nacionalista que visa convocar extremistas para a radicalização.
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