Reintegra, o STF e o agronegócio – JOTA

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Tributário
Não é aceitável o Poder Executivo virtualmente extinguir esse regime especial
No último dia 15 de setembro, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), com apoio do JOTA, realizou o 2º Seminário Nacional de Tributação do Agronegócio. Tivemos a honra de participar do evento, dividindo com o professor Heleno Torres a mesa dedicada ao tema “Agronegócio, Tributação e Questões Internacionais”. Na ocasião, trouxemos algumas reflexões a propósito de importante assunto para o agronegócio e para as empresas em gerais: o Reintegra. Gostaríamos de retomar breves reflexões.
O Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Empresas Exportadoras (Reintegra) foi inicialmente criado pela Lei 12.546/2011 para vigorar por tempo delimitado, tendo sido reinstituído em 2014 pela Lei 13.043/2014 de forma definitiva.
Seu objetivo é “(…) devolver parcial ou integralmente o resíduo tributário remanescente na cadeia de produção de bens exportados” (art. 21, caput, da Lei nº 13.043/2014). Para fazer jus a esse regime, a exportação de bens deve cumprir condições, como industrialização no país, classificação do bem em código da TIPI e que esse bem seja relacionado em ato do Poder Executivo (art. 23 da Lei nº 13.043/2014).
A forma do regime é a concessão de um crédito, passível de compensação com débitos tributários ou ressarcimento. Já o crédito é calculado “(…) mediante a aplicação de percentual estabelecido pelo Poder Executivo (…)”, podendo variar entre 0,1% e 3%, com acréscimo excepcional de 2% (art. 22 da Lei 13.043/2014). Esses percentuais variaram ao longo do tempo, como pode ser constado em decretos que foram emitidos desde 2014. O último foi o Decreto nº 9.393, de 2018, que reduziu o percentual para o mínimo de 0,1%. Essa redução foi uma contrapartida à queda arrecadatória decorrente da redução da tributação sobre o diesel.
Frente a esse cenário nos propusemos a analisar duas questões:
Para responder essas questões deve-se inicialmente identificar a razão jurídica que levou à criação do Reintegra.
Compartilhamos a opinião de muitos estudiosos no sentido de o Reintegra não ser um incentivo tributário, pelo qual o Estado procura reduzir custos de produção para tornar o produto nacional mais barato que produtos estrangeiros. Se assim fosse, seria prática questionável na Organização Mundial do Comércio (OMC). Trata-se, como explica Heleno Torres, de uma relação jurídica financeira, entre o Estado e o contribuinte exportador, por meio da qual se concede a este um crédito[1]. Ainda assim, é um benefício no sentido lato/amplo de um tratamento jurídico positivo.
Com o Reintegra intenta-se re-integrar algo, ou seja, voltar a integrar, a participar de um conjunto, de um todo coerente. O nome é uma escolha feliz para transmitir o objetivo de devolver o resíduo tributário, ou seja, restituir ao contribuinte exportador – de reintegrar a ele – aquilo (custo tributário) que não deveria ter sido recolhido ao Estado.
O que justificou esse regime especial foram as imunidades tributárias relativas à exportação. Entre elas está a contida no § 2º do artigo 149 da Constituição, incluída pela Emenda Constitucional nº 33/2001, segundo a qual as contribuições sociais e de intervenção no domínio econômico não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação. No Relatório da Câmara dos Deputados à PEC que veio originar essa EC foi afirmado: “(…) não se pode admitir qualquer forma de agregação de tributos a bens e serviços exportados” (sublinhamos).
O Supremo Tribunal Federal (STF), quando analisou a imunidade das receitas de exportação, normalmente acolheu o entendimento de que a imunidade deve ser garantida amplamente, para evitar o efeito econômico nefasto de se exportar tributos, o que retira a competitividade do produto nacional. Vejamos três manifestações nesse sentido:
Sendo constatado o alcance da imunidade às receitas de exportação, conclui-se que o Reintegra é um meio para viabilizar o objetivo (a teleologia) por trás da imunidade às exportações. Ao devolver o resíduo tributário, evita-se que o produto exportado carregue em si tributos que incidiram ao longo da cadeia, dando máxima efetividade à imunidade (a), desonerando por completo as exportações, de modo direto e indireto (b) e evitando a tributação sobre parte da exportação, que ocorre a ser aceito o tributo sobre operação interna (c).
A nosso ver, o STF intuiu essa constatação e nela se ampara em sua jurisprudência sobre a aplicação da anterioridade nonagesimal ao Reintegra. Com efeito, a alteração do percentual do crédito do Reintegra se submete à anterioridade porque acarreta majoração indireta de tributos[2]. Ao se perguntar sobre qual contribuinte e em relação a qual ato incidiria a majoração de tributos, a resposta surge: sobre o exportador e em relação ao ato de exportar. Logo, em outro modo de dizer: a retirada/diminuição do Reintegra implica restabelecer encargo tributário sobre a receita decorrente do ato de exportar.
No entanto, a receita derivada da exportação é imune. Como firmado pela Suprema Corte, não pode ter encargo tributário sobre ela, ainda que indireto.
Logo, a coerência com os precedentes que aponta a anterioridade à diminuição do percentual do crédito do Reintegra leva a confirmar a conclusão de que este é um meio de garantir a imunidade.
E assim é porque o sistema tributário brasileiro é complexo e ineficiente. Dadas essas características negativas, não basta apenas afastar o ônus tributário sobre a exportação em si e sobre a receita dela derivada diretamente. Se assim for não será dada máxima efetividade à imunidade (a), a exportação não será desonerada por completo, de modo direto e indireto (b), não será evitada tributação sobre parte da exportação (c). O Reintegra é, na verdade, um meio de viabilizar a teleologia da imunidade tendo em vista um sistema tributário complexo e ineficiente.
Sem esse regime, haverá resíduo tributário, uma carga tributária no produto que está sendo exportado, de maneira que, ainda que indiretamente, por outros caminhos a exportação será onerada tributariamente. Ocorre que não se pode fazer, indiretamente e por caminhos transversos, o que não se pode fazer pelo caminho reto/direto.
A conclusão a que se chega é que aceitar a virtual extinção do Reintegra (com sua redução para 0,1%) é frustrar a regra da imunidade e indiretamente tributar as operações de exportação.
Essa conclusão não se contrapõe à previsão de competência do Poder Executivo para estabelecer o percentual do Reintegra, conforme o “caput” do artigo 22 da Lei 13.043/2014. O Executivo tem essa competência, mas não o poder arbitrário para fixar o percentual de crédito aleatoriamente.
O poder de fixar o percentual é, na expressão de Celso Antônio Bandeira de Mello, um dever-poder, ou seja, uma função: o dever de satisfazer certas finalidades em prol do interesse de outrem[3]. A fixação do percentual do Reintegra é um instrumento para a finalidade de garantir a imunidade às exportações. Desse modo, o Executivo não só pode, como deve fixar e alterar os percentuais do crédito do Reintegra, mas desde que para garantir que a imunidade seja alcançada. Daí, inclusive, a previsão de que o crédito pode variar em função do bem (§ 1º do art. 22 da Lei 13.043/2014).
Assim, digamos que em dado momento se constate que o resíduo tributário de certos produtos é de aproximadamente de 3%. Esse deve ser o percentual. Contudo, se for realizada uma reforma tributária que torne o sistema tributário mais eficiente e reduza a cumulatividade implícita, o resíduo talvez passe a ser de aproximadamente 0,5%. Nessa hipótese, o Executivo não só pode, como deve alterar o percentual.
Todavia, se nada foi alterado no sistema tributário no sentido de reduzir a cumulatividade implícita e reduzir o resíduo, o percentual do Reintegra não deve ser alterado, por exemplo, para compensar a redução da tributação sobre o diesel. A compensação em questão pode ser feita por aumento de um tributo, ou pela redução de uma despesa discricionária. Já alterar o percentual e com isso frustrar a plena efetividade da regra da imunidade não é admissível. É desvio de finalidade, contrário ao devido processo legal, garantido no artigo 5º, LIV, na linha da consistente jurisprudência do Supremo.
Ainda assim, pode-se pretender contestar a conclusão aqui posta alegando que o Reintegra não existia antes das leis de 2011 e de 2014. Então, seria lançada a questão, em forma de desafio: se esse regime é imposição constitucional decorrente da imunidade, estávamos, sem nos apercebermos, em uma situação inconstitucional antes de sua aprovação?
A dúvida é pertinente, mas sem força para afastar as conclusões antes postas. A resposta se encontra no chamado postulado ou princípio da proibição do retrocesso.
Essa vedação, muito conhecida em relação a questões ambientais, parte da constatação de que a Constituição Federal de 1988 não visa a somente garantir direitos e limitar o poder do Estado. Ela é repleta de normas programáticas e impõe, na medida do possível, a busca pela efetividade delas. Em outras palavras, a Constituição é, de certa forma, um programa a ser implementado progressivamente.
A implementação de direitos, princípios e, enfim, valores consagrados pela Constituição é sua realização. Daí decorre a conclusão de que, se a Constituição é realizada por meio de normas infraconstitucionais, passa a ser vedada a simples e injustificável revogação do direito, princípio ou valor realizado. Aceitar tal revogação significaria tolerar que a Constituição, após ser realizada, possa voltar ao cenário de não implementação, voltar a ser um mero complexo de enunciados normativos destituídos de eficácia real.
Por decorrência, aceitar a virtual extinção do Reintegra (para compensar redução de ônus tributário sem relação com as exportações) é admitir o retrocesso na efetivação da Constituição, é admitir que a Constituição seja maleável e destituída de força jurídica, contrariando o postulado da máxima efetividade dos direitos constitucionais. Não, não se pode aceitar essa postura! A Constituição é formada por normas jurídicas com pretensão de eficácia, que devem ser realizadas e que, se o são, não se transige com o retrocesso destituído de suficiente justificativa e adequada contrapartida.
Dado todo esse cenário, devemos, então, nos perguntar se haveria razão jurídica para mais produtos agropecuários se inserirem no Reintegra. A questão se põe porque, como visto, as condições para usufruir desse regime são industrialização no país, classificação do bem em código da TIPI e que esse bem seja relacionado em ato do Poder Executivo (art. 23 da Lei nº 13.043/2014). Logo, nos termos da lei, produtos agropecuários que não passam por processo industrial e/ou que não tenham sido listados pelo Poder Executivo não poderiam ter acesso ao regime.
O STF tocou neste ponto no RE nº 1.371.101, a respeito dos produtos açúcar e álcool não listados. A 1ª Turma decidiu contrariamente ao contribuinte, pois, a seu ver, o Reintegra seria “(…) um instrumento de estratégia estatal de política econômica necessariamente adaptável conforme as contingências fiscais e extrafiscais a serem enfrentadas, (…)”. Não haveria, então, direito subjetivo adquirido dos contribuintes à apuração de créditos desse regime.
Ousamos discordar da 1ª Turma do STF, por tudo quanto aqui exposto. O Reintegra é meio para garantir o mandamento constitucional da imunidade às exportações em meio a um sistema tributário complexo e ineficiente. Não se trata meramente de “política econômica adaptável”. Essa expressão nos parece verdadeiro eufemismo para evitar a afirmação (implícita no fundamento da decisão) de que o Executivo teria arbitrariedade para conceder ou virtualmente exterminar o regime, mediante a adoção do percentual de 0,1%, mesmo quando há cumulatividade que leva à exportação de tributo. Foi isso, em crua mensagem (com a devida vênia e em nossa avaliação), o que a 1ª Turma decidiu.
Como decorrência de tudo quanto exposto, nos parece inevitável a conclusão de que os produtos agropecuários — mesmo não industrializados — carregam consigo um resíduo tributário. Ele pode ser menor do que produtos industrializados com longa cadeia de produção. Por isso, o percentual do crédito talvez deva ser inferior a de outros produtos. Todavia, negar o resíduo tributário caracteriza esforço para não enxergar a realidade.
Na hipótese de o STF reconhecer a inconstitucionalidade da virtual extinção do Reintegra pelo Decreto nº 9.393/2018, o tema da aplicação do regime a produtos agropecuários não industrializados poderá ter melhor discussão no STF em novo recurso que seja recepcionado ou, politicamente, no Congresso Nacional.
Em síntese, em nossa opinião, o Reintegra é uma forma, em um sistema tributário complexo e ineficiente, de aplicar a imunidade às exportações. Por isso, não é aceitável o Poder Executivo virtualmente extingui-lo, com a adoção do percentual de 0,1%. Agir assim é contrariar a imunidade e incidir em retrocesso que retira a realização da Constituição. A competência do Executivo para alterar os percentuais do Reintegra deve se pautar por razões técnicas, vinculadas ao aumento ou diminuição do resquício tributário.
Pelas mesmas razões, não vemos fundamento constitucional para negar esse regime de ressarcimento do resquício tributário a produtos agropecuários exportados. O percentual a eles aplicável pode ser outro, mas é despropositado negar a existência de um resquício tributário a esses produtos, a contrariar a máxima (ou ao menos a devida) efetividade à imunidade às exportações.
[1] TORRES, Heleno Taveira. O REINTEGRA como instrumento de desoneração de exportação não se confunde com incentivo fiscal. In TORRES, Heleno Taveira e DONIAK JR., Jimir (coord.). Agronegócio, tributação e questões internacionais. São Paulo: Quartier Latin, 2019, p. 28.
[2] Nesse sentido, p. ex., vide o RE nº 1.190.379, da 1ª Turma, e o RE nº 1.227.499, da 2ª Turma.
[3] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 29ª ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 72.
Jimir Doniak Jr. – Advogado, mestre e doutor em direito tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro do Carf
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